Vai para um bom tempo já. Creio que foi Cavaco Silva quem nos deu esta frase imorredoira – “Onde há um autarca nasce uma rotunda!”». Verdade. Não prova que o homem estivesse sempre certo, por mais que raramente tivesse dúvidas, mas dessa vez acertou em cheio. Devemos agradecer-lhe por isso.
Podia ser objecto de estudo, esta obsessão nacional com as rotundas. Mesmo. Quando se fez um comparativo internacional, há um par de anos atrás, pois adivinhem lá em que parte da tabela é que Portugal ficou? Em segundo lugar! Apenas atrás de França, Portugal tinha, em 2023, a módica cifra de 473,4 rotundas por cada milhão de habitantes. Valha-nos isso ao menos. Podemos não ter hospitais; podemos ter hospitais e não ter ambulâncias; podemos ter ambulâncias e não ter médicos; podemos ter médicos e não ter meios de diagnóstico; podemos ter meios de diagnóstico e não ter medicamentos…
Mas rotundas, senhores? Façam-me o favor.
A câmara municipal de Famalicão precisa de 15 meses para avaliar a viabilidade de uma rotunda. (…)Colocou lá umas barreiras de plástico meio desengonçadas, daquelas que costumamos ver nas obras de berma de estrada.
Pois temos rotundas para dar e vender. E porquê, homens de Deus? Ora, porquê. Querem lá saber porquê. Deixo-vos uma teoria: é que somos um país do barroco tardio. É isso, prezamos o estético acima do funcional. Vale para as rotundas como vale para os sotores de três nomes, essa autêntica praga nacional – em Portugal qualquer cabeça pensante quer logo ter três nomes, e mais parece que é a única forma de se levarem a sério. Um havia (um só) que até tinha quatro nomes! E quem era, quem, quem?
Mas vale também para o parque automóvel de alta cavalagem, e quem dera aos franceses – que se fiquem com as rotundas e já é uma sorte. E já agora: como vale para os empedrados finos – pagos com o dinheiro dos alemães – com que impermeabilizamos os nossos centros urbanos. Soa familiar, não é verdade?
Agora, reparem, não é que seja tudo mau: também o barroco nos deixou em herança algumas graças superlativas do que possa ser isso do engenho humano. Teve é o seu tempo, e nós como é próprio devotamos-lhes a nossa atenção em programas lúdicos, daqueles em que se leva a família de excursão ao museu. Isso está tudo muito certo. O problema é quando nos deixamos enredar em rodriguinhos e salamaleques que acabam a prejudicar a salubridade da nossa vida quotidiana.
Vem isto a propósito, vejam lá, da nova rotunda na cidade que, a partir da Avenida General Humberto Delgado, dará acesso à central de camionagem – perdão, “Centro Coordenador de Transportes”. Não são só os nomes pomposos. Famalicão há largos anos contribui galhardamente para as estatísticas das rotundas. E dentro delas, aposta em nichos: a rotunda junto ao tribunal, por exemplo, até há bem pouco tempo seguia muito bem classificada no concurso mundial das “rotundas tortas”, mais a mais porque dentro dela pontificavam (tome nota): um posto de média tensão; o piso irregular; várias tampas de esgoto salientes. Agora resolveram o posto e resolveram as tampas, mas ficou o piso irregular. E posto isso, a rotunda continua torta, logo não desesperem: ainda pode ganhar o concurso.
Mas voltando à rotunda na avenida General Humberto Delgado. É um daqueles casos em que antes de o ser já o era. É provisória, mas vai passar a ser definitiva. Acho este episódio muito revelador do espírito do barroco tardio que impera no nosso Portugal do séc. XXI. Passemos aos detalhes.
Em primeiro lugar, a rotunda não é propriamente nova: vai para quase 15 meses que se encontra lá, a cumprir a nobre função de escoar o trânsito crescentemente entupido do centro da cidade. Só que é provisória, oh que horror! Isso é que não, não pode. Não fosse este um ano de eleições.
Seja, a câmara municipal colocou lá umas barreiras de plástico meio desengonçadas, daquelas que costumamos ver nas obras de berma de estrada. Mas tomem nota: o propósito foi sempre o de avaliar a viabilidade daquela solução.
E porquê? Bem, porque quando se enfia uma rotunda entre um semáforo e o túnel que atravessa a rotunda de Bernardino Machado, importava medir os impactos expectáveis sobre a fluidez do trânsito originados pelo influxo acrescido provindo da central de camionagem, não? (perdão, Centro Coordenador de Transportes)
Eu, bem vistas as coisas, tendo a achar que os prós superam os contras, e dessa forma sempre se evita que carros e autocarros tenham de ir mais adiante para reverter a marcha. Mas talvez fosse mais funcional (lá está) confiar a gestão do trânsito a novos semáforos coordenados com os que já lá estão. Ao invés do que agora se preconiza, que é deixar os condutores entregues uns aos outros. Pois é isso, em essência, a natureza de uma rotunda: quem se apresenta pela esquerda passa; os outros esperam pacientemente pela vez. Ou não: também podem embarrilar a rotunda, e nesse caso sobra para os semáforos e para o túnel. Como se tem visto, aliás, nas horas de ponta sobretudo. Ou não?
Agora puxe lá da calculadora, que vamos fazer contas. Não sei se sabia, mas esta solução provisória custou 62.000 euros. Parece-lhe muito, 62.000 euros pelo aluguer de umas barreiras de estrada?
Mas pronto: não é tanto se se faz a rotunda ou não, e sim os fundamentos pelos quais se faz a dita. Porque: se a câmara municipal de Famalicão precisa de 15 meses para avaliar a viabilidade de uma rotunda, pergunta-se então de quantos estudos precisou, a quantos técnicos reputados recorreu, em quantas análises comparativas multidisciplinares terão sido convocados para finalmente se concluir o óbvio ululante?
Quando não, haveríamos de concluir que decidiram por fezada?
[é capaz de ter sido por fezada, se pensarmos que nem um mês havia decorrido e já o nosso edil declarava, ufano, que a decisão estava tomada]
Claro que um incauto atreve-se na ideia de que para tanto bastasse, talvez, uma semana. Ah e tal, uma é pouco? Duas, então? Punha-se um funcionário supranumerário à coca numa das entradas, munido de caneta, bloquinho, capacidades aritméticas também ajudam, e o trabalho quase se fazia por si mesmo. Quer dizer, carro entra, carro sai, ou então não, embarrila ali mesmo no meio. Só que foi preciso alourar a pevide por longos 15 meses até que fosse a altura mais propícia. Lembrem-se:
Barroco tardio…
Agora puxe lá da calculadora, que vamos fazer contas. Não sei se sabia, mas esta solução provisória custou 62.000 euros. Parece-lhe muito, 62.000 euros pelo aluguer de umas barreiras de estrada? Não sei, depende… é de facto muita massa se atentarmos à mera circunstância física da empreitada. Mas e se foi mais do que isso? Falo de metafísica: porque vejo aqui, quiçá, nada menos do que um encontro de almas. De duas, pelo menos: uma a quem propuseram o incómodo de dispensar umas barreiras de estrada e outra a quem lhe pareceu uma excelente ideia dispensar 62.000 euros pelo incómodo do outro.[ver aqui o contrato].
Continuando as contas. Em cima destes 62.000 euros tão bem gastos, o nosso excelso presidente da câmara quer agora gastar mais 100.000 euros. E para quê? Ora, vai transformar a rotunda provisória em rotunda definitiva. E sabem onde é nesta história entra o barroco tardio de que falava mais atrás? É que nos 100.000 euros cabe um chafariz!
[Podia aproveitar o que está ao abandono na rua de Camões, próximo à igreja matriz, mas não…]
Convenhamos: ter uns míseros semáforos não dava direito a cerimónia de inauguração, pois não? E daí não sei, talvez desse, talvez desse… Mas a plaquinha comemorativa, saía? Mais difícil. E no fim de contas, os empreiteiros também agradecem – falta saber se será o mesmo das barreiras provisórias. Alguém tem de contribuir para as campanhas eleitorais, e os semáforos não dão de comer a muita gente.
Só vantagens.
Portanto: 15 meses depois, 162.000 euros depois, vamos ter uma rotunda com chafariz num sítio onde um semáforo fazia as vezes, com parcimónia e eficiência acrescidas, digo eu (mas não tenho três nomes).
Outra vantagem é esta: em Outubro há eleições.
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