Na mitologia natalícia abrigam-se tréguas de paz, desfilando no palco do mundo celebrações de magia encantatória de tolerância, de amizade e de entendimento fraternal entre os seres humanos.
Por umas horas, embainham-se espadas, esquecem-se diferenças (étnicas, religiosas, sociais…), suspendem-se conflitos, abastecem-se de alimentos os “bancos de pobres”, cantam-se hossanas a um Deus ausente.
Um dia de felicidade a todo o custo! Para todos! Em toda a parte!
A nossa memória, seletiva e traiçoeira, embala-nos neste sonho inebriante, dificultando a recuperação de memórias adormecidas.
Na penumbra das minhas recordações, da vivência angelical natalícia de meninice e de infância, ficou para sempre gravado um acontecimento que estilhaça toda esta magia celestial.
Na véspera da noite de Natal, um corredio de mulheres e homens, de corpos emagrecidos, com porte firme e digno, serpenteavam os estreitos e enlameados caminhos envolventes da Casa da Quinta de minha avó materna, carregando púcaros e cântaros, garrafões e sacos de sisal, abeirando-se dos portões já abertos.
Num silêncio sepulcral, cumprindo um ritual já conhecido, eu abastecia de vinho as vasilhas de barro e de latão pela torneira da “Pipa dos Pobres”, já predestinada do tempo das vindimas.
À despedida os caminhantes, com gestos cerimoniosos, acenavam um agradecimento carinhoso, à “senhora Mariquinhas”, formulando votos de Feliz Natal para toda a família. Alguns balbuciavam: “Deus seja louvado!”.
Os mais familiarizados penetravam no portão principal, onde a minha mãe, “Dona Gininha”, os presenteava com géneros alimentícios campestres apropriados à ceia de Natal.
Já fora da “Casa da Aldeia” deitavam pé ao caminho, pejado de pedras e poças de água, evitando os sulcos cavados pelos rodados dos carros de bois, buscando outras casas de lavradores. Nenhuma lamúria ou queixume se ouvia. O pouco que recebiam deixava-os felizes e agradecidos. Quase pediam desculpa por ali estar!
Ao final da noite, já com a consoada deglutida, e aquecidos pelo convívio familiar, demandavam na escuridão a igreja paroquial, para participar na missa do Galo.
Vinham em traje de festa, altivos e confiantes, agradecer a Deus, entoando cânticos em uníssono com os seus amos e senhores, e apressavam-se para beijar os pezinhos do Menino Jesus, que o senhor abade segurava nas mãos, já depois de o ter “acordado” e retirado do presépio enfeitado e iluminado.
Hoje, à distância de mais de meio século, quando interrogo as estrelas, tentando descobrir onde e porque vislumbrei as injustiças e desigualdades que me rodeavam, os primeiros sinais que me chegam não indiciam a escola pública, do a, e, i, o, u, da tabuada e muita reguada, com professores acomodados e submissos.
Muito menos da Igreja, de costas voltadas para o mundo e indiferente aos problemas e angústias dos seus crentes, sobretudo dos mais humildes e desafortunados.
Encontro sim, algumas vozes de sacerdotes inconformados e corajosos, que denunciavam do altar a demissão e indiferença da Igreja na sua função social, deixando à sua sorte os seus fiéis.
São exemplos que mais tarde iluminam e alimentam a revolta e abandono – pese embora as arreigadas tradições familiares religiosas – de uma Igreja refratária aos valores fundacionais de proteção dos humildes e desfavorecidos, e permeável à serventia dos poderosos.
Neste despertar em busca de caminhos alternativos encontro ainda influência – muito antes de descobrir o campo da política, donde soavam vozes de resistência à ditadura – nas clivagens das diferenças e discriminações sociais, nos colegas de escola primária, que todos os dias observava, alguns descalços e famintos, e nos companheiros de adolescência (operários têxteis, da construção civil…), com os quais jogava futebol e foliava nas romarias. Os mesmos que, poucos anos depois, vi emigrar a salto para a Europa.
Mas era no Natal, que a pobreza e as desigualdades sociais mais tocavam a minha sensibilidade, conquistando um lugar privilegiado na memória que nunca esqueci: as mulheres e homens que calcorreavam os caminhos da minha aldeia na véspera da Ceia de Natal!
Vendo bem, os caminheiros da minha aldeia, transportavam não o vinho para a Ceia do Natal, mas o sossego e o aconchego das consciências da comunidade. Fraco e ilusório consolo, porque nunca se libertaram do peso da ignomínia – uma vergonha para todo o sempre – a que condenaram os seus concidadãos!
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