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Vila Nova de Famalicão
Sábado, 23 Novembro 2024
Raphael de Souza
Raphael de Souza
Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.

Porque cismei eu com Godot?

A existência, a crença e a vontade humana.

7 min de leitura
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Raphael de Souza
Raphael de Souza
Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.

Famalicão

“Pois, que adianta ao homem ganhar
o mundo inteiro e perder a sua alma?
Ou, o que o homem poderia dar
em troco de sua alma?”

– Marcos 8:36,37

Há coisas que nos fascinam. Há coisas que nos fazem sonhar. Livros, canções, filmes, objetos, pessoas, paisagens… uma infinidade de coisas nos podem fascinar. Durante estes anos que levo a ler e a tentar perceber a literatura e o poder das palavras e dos autores, não faltaram livros que me fascinassem com histórias e personagens que ganhavam vida perante o meu olhar singelo. Wilde, Eça, Salinger, Steinbeck… Houve uma infinidade de autores que me fizeram as delícias durante todos estes anos.

Uma das obras que mais me fascinou nos últimos tempos foi “Esperando Godot”, um clássico do teatro escrito pelo multifacetado escritor irlandês Samuel Beckett. Originalmente escrito na língua francesa, a peça foi lançada em 1952 e conta-nos a história de Estragon e Vladimir, dois companheiros que, num cenário pouco alegre e solarengo, esperam a vinda de um tal Godot, um indivíduo cuja identidade jamais é revelada na peça e de quem os próprios Estragon e Vladimir pretendem algo que os próprios desconhecem.

A peça dá-nos um enredo cheio de contínuos diálogos sem sentido e aparentemente sem um fio condutor que possa dar um nexo àquilo que estão a falar (ou, pelo menos, o nexo que o olhar do espetador/leitor mais comum procura). Nesses diálogos, Estragon sempre revela ser a o parceiro mais seco, objetivo e pouco dado a emoções; já Vladimir revela ser mais palrador, subjetivo e muito dado às emoções, sendo dos dois o mais “filósofo”. Outros dois personagens aparecem na história: Pozzo e Lucky. Pozzo é um cego que fala de forma enigmática, enquanto Lucky é um mudo que age de forma tola e segura uma mala e obedece às ordens de Pozzo.

Apesar da espera paciente que ambos os “amigos” têm, Godot teima em não chegar. Em vez dele, vem sempre um menino no final de tarde/início de noite que lhes diz que Godot não virá, mas que o mesmo promete comparecer no dia a seguir. Menino sempre é questionado se é o mesmo menino que aparecera no dia anterior para dar o recado, mas o mesmo nega. Perante questões mais profundas, o menino não sabe responder. O menino leva sempre com ele o recado para Godot de que esteve com eles. A criança foge e Vladimir cai para trás. Os dois companheiros sempre acordam no dia seguinte e sempre discutem sobre o facto de não puderem continuar num impasse constante.

“Esperando Godot” é uma obra interessante. Confesso que, apesar de não ser um leitor de obras teatrais, esta foi uma obra que puxou por mim e que me fez cismar com o próprio enredo. Não é a melhor obra para se ler quando se está em baixo, devido à filosofia absurdista que move a peça. Contudo, também não é a melhor obra para se ler quando se está muito animado, pois a obra traz-nos um contraste pesado de emoções e o próprio leitor pode não achar piada à obra. É uma obra adequada para períodos em que estamos a meio-termo, isto é, nem alegres nem transtornados.

A minha cisma para com a obra prende-se com a representação que, a meu ver, o enredo faz da existência, da crença e da vontade humanas. Para explicar este meu ver, terei de recorrer a duas personagens mitológicas da Antiguidade: Sísifo e Ícaro. Na mitologia grega, Sísifo era conhecido por ter talento e maestria na arte de ser maldoso e foi um dos mais profundos ofensores dos Deuses. Após a sua morte, é condenado a empurrar por toda a eternidade uma pedra gigante pela montanha acima até ao cume. Sempre que atingisse o cume, a pedra rolaria pelo monte abaixo, fazendo com que o condenado tivesse de começar de novo. Na cultura moderna, este castigo simboliza o eterno esforço e persistência que uma pessoa revela perante sucessivos desaires.

Por sua vez, Ícaro era conhecido por ser filho de Dédalo, um prestigiado artífice e criador de artimanhas. Após Pasífae (filha de Hélio, Deus do Sol) ter engravidar de um touro, dá à luz um minotauro, uma criatura que é metade homem e metade touro. Como medida preventiva, o minotauro é encurralado num labirinto impossível de desvendar pelo comum mortal que Dédalo criou. Após ajudar Teseu a matar o Minotauro e a escapar do labirinto, Dédalo é aprisionado no labirinto com seu filho Ícaro. Como forma de escaparem, Dédalo cria umas asas de cera para si e para o seu filho para poderem voar. Na fuga pelos ares, Ícaro, curioso, tenta voar mais alto para alcançar o Sol. Com o calor, as asas derretem e Ícaro cai dos céus. Ícaro é representado na era moderna como a prova de que não podemos fazer mais do que aquilo que podemos fazer.

Que têm então Sísifo e Ícaro a ver com Godot? Na minha opinião, Godot pode ser representado como um Deus (“Godot” pode ser uma junção do inglês “God” – que significa “Deus” – com “-ot”, uma possível desinência) ou, pelo menos, como um falso Messias. Tal como os messias e os Deuses, Godot faz Vladimir e Estragon cometer o sacrifício de continuar esperando por ele, na esperança de que ele apareça. Eles próprios representam figuras de gente pobre, com praticamente nada, a não ser a esperança. Godot surge como a esperança de que algo possa mudar, fazendo-os esperar dias e adiar o suicídio (algo que, normalmente, faz parte de um crença radical religiosa).

É aqui que as personagens mitológicas entram. Sísifo representa a constante persistência dos dois companheiros. Tal como acontece com Sísifo, Estragon e Vladimir empurram a sua pedra gigante pelo monte acima: a infindável espera pela chegada de um homem que não sabem quem é nem sabem o que pretendem dele. Assim como a o esforço de Sísifo é cheia de lamúria e desespero, o esforço dos “heróis” beckettianos da peça também contem ambas as coisas. A passagem que ocorre entre a fuga sem deixar rasto por parte do menino e o acordar dos companheiros no dia seguinte representa aquilo que, no mito grego, é o rolar da pedra pelo monte abaixo que cria um novo ciclo, um novo esforço. Pode ser comparado com aquilo que acontece com Prometeu que, acorrentado no Cáucaso, vê o seu fígado regenerar após ser dilacerado pela águia para que tenha lugar um novo sofrimento.

Ícaro, por sua vez, representa a constante curiosidade que ambos têm em desvendar o mistério sobre quem é Godot sobre o que acontecerá quando ele chegar. Esta curiosidade leva-os aguentar estas esperas e a ter sucessivos desaires com a vinda sucessiva do menino. A queda de palco que Vladimir tem ao tentar alcançar o menino representa a tal queda que Ícaro tem. Assim como Ícaro pretende conhecer o Sol, Vladimir quer conhecer o seu próprio Sol: o menino.

Meu caro leitor poderá estar a pensar no quão rebuscado pode ser esta peça de Beckett. Acredito que poderá ter razão. Sendo o dramaturgo irlandês o pai ou um dos pais do Teatro do Absurdo, é natural que haja algo de rebuscado nas suas peças. Acredito que “Esperando Godot” é um livro aberto a teorias. O próprio Pozzo e Lucky ainda estão fora do meu entendimento, sendo que continuo tentando formular alguma teoria sobre eles os dois. O rasgo de pensamento que Lucky tem no meio da sua patetice é algo que é um mistério. Pode ser um mistério para muita gente. A peça pode ter relações com o cinema atual. Por exemplo, a falta de memória sobre o dia anterior com a qual os dois heróis acordam no dia seguinte faz-me lembrar o segundo episódio da segunda temporada da série “Black Mirror”, em que Victoria, a protagonista acorda todos os dias com amnésia num quarto que tem uma televisão ligada e comprimidos espalhados no chão, indicado a hipótese de tentativa de suicídio por envenenamento. No fim de cada dia repleto de fuga a perseguições, após lhe cair o cenário de “reality show” (qual “Truman Show”), regressa sempre inconsciente ao mesmo cenário onde começa cada dia.

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Raphael de Souza
Raphael de Souza
Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.
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