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Vila Nova de Famalicão
Sexta-feira, 18 Outubro 2024
Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

Outra vez arroz…

O presidente tem uma teoria: o que atrai hordas de turistas a Famalicão é o centro da cidade remodelado. Qual é o turista que resiste a uma coleção de vasos a decorar a urbe como nunca se viu na Europa Ocidental?

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Paulo Barros
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Economista famalicense.

Famalicão

Cronista que se preze solta de quando em vez uma inconfidência. É a chamada teia de cumplicidade com os leitores, e cai sempre bem. Pois aqui vai uma: quando iniciei estas crónicas mensais, receei ter falta de assunto. Chega a ser cómico, claro. Agora, rio-me: porque se há que coisa que não falta em Famalicão é assunto.

Outra coisa que pretendia evitar é esta espécie de tiro ao boneco em que fatalmente caímos todos, tantas são as abébias. O problema é que o boneco não cessa de se pôr a jeito. Claro está, podíamos poupá-lo a muitas invetivas, acaso ele se mostrasse mais assisado. Depois vêm uns e dizem, ‘Coitado, não dá para mais’. E não dá, de facto. Mas é um boneco recalcitrante, que abraça o desconchavo com desmesurada ligeireza. Torna-se impossível ignorar.

Acham que exagero? Pois bem, aqui vai, em minha defesa: foi inaugurar um supermercado, o que para começar é logo um bocado parolo (antes tinha ido inaugurar uma loja de sofás). E fosse só isso, mas uma vez lá à porta, com o alcatrão do parque de estacionamento em pano de fundo, e já inebriado pela banhada de insígnias que erigiu a propósito de vida, o homem sai-se a dizer que agora Famalicão tem um autêntico boulevard no seu seio. Eu sei: patético que doi.

Não me contaram, eu vi. Aqui fica, para memória futura.

Os assessores sofrem. Claro que não é de todo injusto, visto serem pagos e bem pagos para isso. O gabinete de comunicação da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, por exemplo: anda fortíssimo. A mínima deixa serve-lhes de pretexto, e já lá vamos. Porque não estão sozinhos nessa demanda: e se o leitor excelentíssimo estiver familiarizado com o conceito – bastante em voga nos dias que correm – de ‘guerra por procuração’, então já anda perto do que quero significar. Simplesmente aplicado à comunicação corporativa do nosso município.

Porque mais do que lutarmos as nossas próprias guerras, a vantagem está toda em arranjarmos quem as faça por nós. E aqui entra em cena o ACSL, acrónimo de ‘Apparatchiks da Comunicação Social Local’. Se nunca ouviram falar, passo a informar: é um clube exclusivo, com três membros apenas. Não pagam quotas, até é mais ao contrário porque aqui são os membros do ACSL que recebem prebendas, via publicidade institucional da Câmara. Já adivinharam de que estou a falar de três jornais da terra, mas quais, mas quais?

Deixo uma pista: aqueles e só aqueles que não deram conta de que o ex-autarca Paulo Cunha (entre outros ‘notáveis’ da nossa terra) anda a ser investigado pelo Ministério Público por suspeitas de participação económica em negócio. Claro que isso não faz do homem culpado. Só faz do homem notícia, acho eu. O ACSL acha que não.

Pois sim. E o que é que os membros do ACSL dão em troca para pertencer a tão exclusivo clube? Outros menos experimentados do que eu nas singelezas de vida diriam: a dignidade! Não vou tão longe, prefiro a beleza poética dos exemplos práticos. Tão simples quanto isto: se o gabinete de comunicação da Câmara Municipal de Famalicão disser que a terra é plana e o sol anda em bolandas de um lado ao outro do planisfério, compete ao ACSL propagar placidamente esse princípio de fé. Ao vivo e a cores, de preferência: nos jornais, nos directos do Facebook, nas rádios, nas televisões (que também as há). É um fartote de meios.

Desconchavo é abraçar o insólito de passo que se renega o óbvio. Na ânsia de agradar ao chefe, vejam lá o que eles descobriram: em Famalicão, tomem nota, o preço do metro quadrado para arrendamento de habitação é dos mais baratos do país. Sim, sim! Saiu no ‘Cidade Hoje’ e o ‘Opinião Pública’ deu-lhe troco. E como é que eles sabem isso? Ora, foram consultar o ‘Idealista’! É de estalo.

Reparem, a mim o que me preocupa não é que um qualquer adulto se interesse por comentar para o lado esta bela conclusão tão solidamente apurada. Mas sabemos que chegamos a um certo grau de indigência mental quando a esses adultos lhes parece próprio fazer disso notícia. Que a comentem, que a discutam. Lá está, que façam disso assunto (lembram-se quando eu atrás disse que em Famalicão não falta assunto?).

Fosse como fosse, estando o terreno revolvido, logo, logo o gabinete de comunicação da CMF tomou a dianteira: resolveram ensinar-nos o crescimento do turismo em Famalicão. Como uma coisa destas não se faz de improviso, vai de organizar uma conferência de imprensa (e não só, visto que também lá estava o ACSL). O tom, claro está, era de contentamento. Pudera! Entrava-se em detalhes: dos turistas de Famalicão, X são franceses, Y são alemães, etc e tal. As dormidas? Aumentaram, aumentaram muito. Os museus? Um sucesso de afluências sempre em crescendo.

Ninguém estranhou o sotaque dos ditos turistas, e se os têm entrevistado era uma hipótese, agora assim… é que é um tipo de gente que tem este mau hábito de ir e vir sem mais aquelas! Tampouco alguém perguntou quantas visitas escolares encheram os museus. No plural: museus. Todos de estalo, é como a notícia do ‘Idealista’. Famalicão até pode gabar-se de ter uma rua dos museus – atrever-me-ei a chamar-lhe boulevard? Outro estalo (de luva branca!): nem Paris se arroga a tanto.

Pois é isso, o nosso boulevard dos museus: sugiro a visita, é como no Guia Michelin, merece um desvio. Deve o turista dirigir-se ao Lago Discount; chegado lá, prepare-se para subir à cota de cento e cinquenta metros (um tanto íngremes, devo dizer, mas não se queixe, que nada se faz sem esforço). Uma vez lá em cima deixe-se recompensar com a visão gratificante: tem ali dois museus plantados à esquina, bem de frente um para o outro. Pena estarem fechados quase sempre. Mais parece que se contemplam mutuamente, pela pasmaceira dos dias, a ver qual dos dois desiste primeiro.

A rua está que parece que rebentou ali uma guerra há muito, muito tempo – mas não o tempo suficiente para ter sido já descoberta pela brigada de limpeza da Câmara. É nesse momento que a irrisão alcança o turista: vistos de fora, parecem apenas armazéns em avançado estado de decomposição. Por dentro não saberia dizer – já comentei que estão fechados quase sempre? Nas agendas municipais, porém, os ditos museus cumprem a função com brilho, e isso é o que se quer. Não anda a senhora vereadora satisfeita? Por alguma coisa será. Turistas é que nada: também não fazem falta, são uns queques.

Todavia, diante da conferência de imprensa da senhora vereadora, o pagode impressiona-se: é muita estatística junta. Vê-se que há ali trabalho, há ali planeamento: metas, planos de acção, campanhas! Uma máquina perfeitamente oleada a turbinar em modo auto justificativo. Para o fim ficou-me uma pergunta desagradável: e turismo, temos? Se calhar não.

Falando sério. Famalicão não tem turismo. Nunca teve. E porque teria? Não tem de ser um drama. A Póvoa não tem indústria. A Amadora não tem agricultura. Mas Famalicão quer ter turismo. Fica bem ter turismo, o turismo está completamente na moda. Então o que é que se faz em primeiro lugar, em não havendo turismo? Cria-se o pelouro do turismo. É isso mesmo: contratam-se pessoas, dão-se-lhes tarefas, e dossiês, e projectos. E depois disso, meu amigo: é que venha quem vier. Claro que há turismo! Então não temos um departamento de turismo? Um posto turístico? E temos funcionários; e acções promocionais; e campanhas! A vereadora até chefiou uma comitiva que foi participar numa feira de turismo. Ficamos nós a saber: com stand e tudo. Imagino os slogans: Visite Famalicão: Fama e Proveito. Come and see for yourself. Se isso não é turismo então não sei o que será turismo. O deles, pelo menos.

Insisto no desconchavo. O presidente tem uma teoria: não só as insígnias, não só o boulevard; o que atrai hordas de turistas a Famalicão é o centro da cidade remodelado. É natural: as obras de arte, o empedrado fino, a praça larga tão propícia a concertos, qual sala de visitas aberta ao mundo. E a coleção de vasos! (Ainda para mais intercalada com os carros mal estacionados, que parábola!) Qual é o turista que resiste a uma coleção de vasos a decorar a urbe como nunca se viu na Europa Ocidental? Reparem que são todos escuros. A mim ninguém me tira da ideia que há ali uma mensagem artística por detrás da escuridão. Uma metáfora para o destino sombrio da humanidade: as guerras, o aquecimento global e tudo isso. E na matriz velha também parece que houve quem os visse por lá a entrar, aos turistas. E posto isso saíram. É tudo por demais extraordinário para que eu o consiga descrever satisfatoriamente.

Fica o alerta: se o comum cidadão reparar em grupos (costumam andar em grupos) a cirandar pela cidade, roupas confortáveis, boné na cabeça, guia turístico na mão, não se espante. São eles: os turistas que vêm ver Famalicão pelos próprios olhos.

Já tinha dito que é de estalo?

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Paulo Barros
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