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Sábado, 23 Novembro 2024
Raphael de Souza
Raphael de Souza
Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.

Os 82 anos de Bigger Thomas

Um Ícaro em Chicago tentando ser um filho nativo

6 min de leitura
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Raphael de Souza
Raphael de Souza
Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.

Famalicão

“(…) tu és realmente de outra era, parte da qual aconteceu quando o Negro
deixou a terra veio para aquilo que E. Franklin Frazier chamava de “as
cidades da destruição”. Apenas podes ser destruído ao acreditares que és
mesmo aquilo que o mundo branco apelida de nigger. Digo-te isto porque
te amo, e, por favor, jamais te esqueças disso.”
– James Baldwin, in My Dungeon Shook

O excerto supracitado vem de uma carta dirigida por James Baldwin a seu sobrinho aquando do centésimo aniversário da famosa Proclamação da Emancipação de 1863, discurso protagonizado por Abraham Lincoln durante a tão fratricida Guerra Civil entre os Unionistas e os Confederados que veio abolir a Escravatura. Esta abolição veio a ser consolidada com a 13ª Emenda Constitucional de 1865 e com a 15ª Emenda Constitucional de 1870 (esta última atribui os direitos de voto aos negros).

A mesma carta revela-se bastante emotiva, sendo que a finalidade do autor passa por motivar seu sobrinho a continuar a luta contra a segregação e não se deixar rebaixar por uma sociedade branca. Esta mesma carta abre a obra Fire Next Time, publicada nesse mesmo ano do centenário da Emancipação (1963).

Apesar de ser um autor soberbo – deveras ignorado pelo mundo académico –, Baldwin não é o autor visado da presente. O autor contemplado será Richard Wright, um outro autor negro contemporâneo de Baldwin que fora também ignorado pelos seios literário e académico após a sua morte em 1960. Em vida, publicou importantes obras para a Literatura Afroamericana, tais como Uncle Tom’s Children (1938), Native Son (1940), Black Boy (1945) e The Outsider (1953).

Após a sua chegada à França – nação que era considerada pelos autores americanos da altura como o paraíso da igualdade e equidade –, Richard Wright gozou de aclamação geral dentro da icónica comunidade de autores expatriados, tornando-se de certo modo em um protégé de Gertrude Stein (autora que o mesmo admirava bastante).

Em 2021, 60 anos após a sua morte, surge a publicação a obra póstuma The Man Who Lived Underground pela sua filha e seu neto Malcolm Wright, uma obra que abordava a brutalidade policial e que foi engavetada por 80 anos por causa do preconceito do mercado livreiro da altura em relação a obras afrodescendentes negativistas. Tendo em conta que, no próximo dia 1 de Março, fará 82 anos que Native Son – o primeiro grande sucesso de Richard Wright – foi publicado pela primeira vez, a mesma obra será o foco desta reflexão.

A obra apresenta-nos como protagonista Bigger Thomas, um jovem negro que vivia na zona sul de Chicago, zona de cidade que era de habitação exclusivamente negra – tal como as Leis de Jim Crow de 1877 assertavam (criação de zonas e espaços onde só os brancos frequentassem e outras zonas e espaços só para negros). Devido ao seu passado delinquente – algo frequente no seu meio abrangente, devido à pobreza que se vivia –, o mesmo estava assinalado na sociedade.

Após muita insistência por parte de sua mãe, Bigger aceita um emprego como motorista para a família Dalton, uma família conhecida por ser benfeitora da comunidade afrodescendente de Chicago e por ser crente de ideias iluministas como a “responsabilidade social” e a “ascensão social”. Após a entrevista com o patriarca da família, é rapidamente aceite e incorporado no lar da família, onde a empregada lhe ensina os seus direitos e deveres.

O principal obstáculo do jovem na sua integração na família é Mary, a filha mais nova que desafiava as ideias do pai e acreditava no Sindicalismo e Comunismo (um pouco por influência do seu namorado esquerdista e ativista partidário Jan). Inicialmente, tenta saber se o jovem Thomas sabe o que são sindicatos e se sabe quais os seus direitos, coisa que perturba o próprio jovem (que receia estar a ser emboscado).

Mais tarde, Mary e Jan tentam outra abordagem, conduzindo-o a um bar que o próprio Bigger frequenta na zona onde vive. Aí, têm uma longa conversa sobre a Internacional Operária e o quanto a mesma será a salvação dos negros das garras do capitalismo branco. No meio de tantos argumentos, Jan dá uns panfletos do Partido Comunista (“Os Vermelhos”, tal como eram conhecidos nos Estados Unidos na altura). É de notar que este peso do Marxismo na obra têm a influência da vida do autor, sendo que, na altura em que obra foi escrita, Wright era membro do Partido Comunista (embora o próprio autor tenha dito que a influência não era pouca).

Contudo, aquilo que podia ser o início de uma vida mais próspera acaba por se transformar numa tragédia. A mesma acontece quando Bigger, ao ouvir a mãe de Mary (apresentada como pessoa invisual) a aproximar-se, tenta tapar a boca de Mary com uma almofada para que a matriarca não perceba que sua filha estava embriagada. O que Bigger não perceba era que, na verdade, estava a sufocar a jovem. Ao perceber que a tinha asfixiado acidentalmente, o mesmo teme o julgamento sumário da família Dalton e da sociedade branca, tenta se livrar do corpo, inventando a desculpa de que ela estaria muito ocupada na viagem que iria fazer no dia a seguir.

Após esta tentativa de se livrar do corpo de Mary, tenta inventar todo um plano para exigir um falso resgate para fugir de Chicago com sua namorada, colocando a culpa em Jan (que já não era bem visto pela família Dalton) e nos comunistas. Este plano – que acontece na segunda parte do livro, parte essa chamada de “Flight” (“Voo”/”Fuga”) –, cai eventualmente por terra quando um brinco de Mary é encontrado, indicado que ela não terá saído de casa.

Perante isto, inicia-se todo um épico ciclo de fuga de Bigger Thomas, sendo apanhado pela polícia e levado a julgamento, julgamento esse que acontece na terceira parte do livro – denominada de “Fate” (“Destino”/”Fado”). O julgamento revela ser de facto sumário – tal como Bigger previa –, apesar dos discursos acesos e subversivos do seu advogado marxista Boris Max (incluindo um discurso poético de dez páginas, proferido ao estilo do discurso final d’Apologia de Sócrates).

Native Son é uma obra importante na bibliografia de Richard Wright e também uma obra importante na herança literária afroamericana. A mesma nos mostra um percurso de um jovem que se tenta reerguer e ascender a um nível de vida próspero, mas que acaba por cair perante a força de um sistema repressor.

A divisão da história em três partes (FearFlightFate / MedoFugaFado) indica o percurso mitológico do próprio Ícaro. O Medo que é sentido inicialmente por ambas as personagens quando estão presas no sistema leva à posterior Fuga dessa prisão labiríntica, sendo que a excessiva curiosidade leva ao Fado, ao martírio, ao castigo divino, ao destino incontornável.

“Bigger, irás morrer. E, se morreres, morre livre. Estás a tentar acreditar em ti mesmo. E cada vez que buscas encontrar uma forma de viver, tua própria mente atravessa-se no caminho. Sabes porquê? Porque outros disseram que és mau e fizeram-te viver em más condições. Quando um homem ouve isso vezes e mais vezes e olha para si próprio e vê que sua vida está mal, ele começa a duvidar da sua própria mente.” (Página 452, edição da Vintage Classics)

Esta ideia de liberdade e de martírio também é uma ideia presente no próprio Marxismo disseminado pelas personagens Mary e Jan, essa ideia de lutar pela liberdade até à última consequência. Essa vertente da Internacional foi uma vertente presente nas artes na época de Richard Wright, vertente essa que atraiu muitos escritores e músicos na altura.

De certo modo, o próprio nome do protagonista é um nome poético. Bigger, em inglês, significa “Maior”. Ou seja, o nome dá a ideia de que o personagem é maior que a própria vida, baseando-se no próprio conceito dos super-heróis (“larger than life”) e acentuando a condição de mártir do próprio jovem protagonista.

Apesar da aclamação, Native Son acabou por ser também uma obra atacada por alguns inteletuais pela sua politização. Um desses inteletuais foi James Baldwin.

Seja ou não um livro politizado em demasia, Native Son continua a ser um livro importante em termos históricos, visto que nos mostra uma sociedade mergulhada na repressão das Leis de Jim Crow (semelhante ao Apartheid, inspiram-se na figura de Jim Crow, uma personagem teatral racista de 1832, criada pelo ator Thomas Rice).

Tendo sido escrita por um autor esquecido, é uma obra que carece de traduções para português (pelo menos recentes, havendo rastos de uma tradução portuguesa mais antiga da coleção “Romance Universal”).

Ainda assim, revela ser uma obra de difícil tradução, pois o autor escreve as falas dos personagens negros na pronúncia AAVE (African-American Vernacular English / Inglês Vernacular Afroamericano), sendo um desafio enorme tanto para o leitor como para o tradutor.

Ou seja, o tradutor que quiser trabalhar a obra necessitará de ter as mínimas noções do vernáculo afroamericano para conseguir traduzir de uma forma que venha a respeitar a identidade da própria obra.

 

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Raphael de Souza
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Nasceu em 1997 em Vila Nova de Famalicão. É licenciado em Línguas e Literaturas Europeias pela Universidade do Minho. É também mestre em Língua, Literatura e Cultura Inglesa pela mesma academia, com tese em Literatura Norte-Americana. Apaixonado pela Literatura desde cedo, começou a escrever poesia aos 15 anos, aventurando-se atualmente pela Ficção. É co-fundador do projeto “Sarcasmos Irónicos”, que visa dar palco a novos escritores.
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