Famalicenses! Permitam-me partilhar um estado de alma. Era eu todo entregue aos meus momentos de ócio e eis senão quando como que, por um desses sortilégios em que o algoritmo é pródigo, se me estilhaça a pacatez da vida: tudo por causa de uma singela publicação de Facebook.
Fui ver: e fiquei agarrado! Ou por outra: o algoritmo, esse espertalhão, é que nunca mais me largou. Claro que no início era o verbo, mas consta que não teria chegado a parte nenhuma se pelo meio não se erigisse o necessário mensageiro. E no caso presente, o mensageiro de quem falo é ninguém menos do que o nosso homem em Bruxelas. Cunha, Paulo Cunha – o segredo está no nome.
Devo dizer que a cadência impressiona. À razão de várias publicações por semana, o homem é, à vez, especialista em desenvolvimento regional, comentador televisivo, advogado de negócios, cronista em jornais regionais (vários), cidadão empenhado, desportista das horas vagas. Eurodeputado também.
Pois bem, tendo eu visto e revisto ad nauseum tudo quanto o senhor ou alguém por ele entende partilhar da sua vida quotidiana, concluo isto: o homem eurodeputa pouco. Quer dizer, devia eurodeputar mais, não sei se me explico?
Porque, enfim, isso achava eu, tendo-se esforçado tanto para se ver escolhido para a lista de eurodeputados, era de supor que ficasse mais por Bruxelas, não? E de caminho, que se dedicasse mais aos grandes temas que atravessam o velho continente. A Ucrânia, senhores! O Médio Oriente, e vejam lá no que aquilo se vai tornando.
Pois eu digo: vai ficar pior. Pudera, se o homem está sempre cá! Repare-se, num dia foi à reabertura da igreja de Oliveira Santa Maria. Noutro estava na Universidade Lusíada a participar num debate sobre educação. Noutro ainda, marcou presença destacadíssima na inauguração da escola secundária de Ribeirão, e só fico sem saber em que qualidade lhe concederam o privilégio. O fotógrafo de serviço da câmara municipal é que não foi em interrogações e passou logo aos finalmentes, que é como quem diz, à cobertura fotográfica do sotôr. Deve ser uma espécie de direito adquirido.
Quem beneficia são as nossas terrinhas fartas, sei disso. Mas eu, aqui e agora, permito-me exortar os nossos concidadãos a um exercício de estoicismo. Famalicenses, libertem o Cunha! A Europa precisa do Cunha! O mundo mais ainda!
Estará porventura condenado ao fracasso, este meu apelo. Porque, bem vistas as coisas, estamos perante um daqueles casos em que se pode tentar tirar a terrinha do homem, mas não se consegue tirar o homem da terrinha. Nem com benzina.
Se estou surpreendido? Só um pouco. Quer dizer, já suspeitava de que fosse um caso acabado de arrivismo (parece que agora comprou um Tesla, na falta do Porsche de antigamente). Sem pejo nenhum de saltar do gabinete da presidência da câmara para os gabinetes jurídicos de grandes empresas do concelho. Como consultor, note-se: pretender que não possa haver nisso interesses conflituantes é do domínio do risível.
Acresce que vem tentando construir uma visibilidade política que extravase as modestas fronteiras do concelho. Em ambiente controlado, claro está: o palco que tem é nos jornais e canais televisivos para os quais a câmara municipal contribui, e desde há largos anos. Quê, acharam que não nos dávamos conta? Acharam mal, rapaziada. Mas depois quando posto em xeque não dá a cara, como se viu com a recente reportagem-denúncia do canal Now sobre o projecto das Pateiras do Ave. Típico.
Agora, se esta é a sua nova melhor versão – um prato, esta frase da moda – estamos conversados. O que nos devolve é um boneco de cera, eternamente enfarpelado, à procura da gravitas que manifestamente não tem. Lá lugares-comuns é com ele: até se congratulou com a prestação da comitiva nacional aos jogos para-olímpicos, bandeira nacional e tudo! De resto, o homem não anda, desfila. Mais um tiro no porta-aviões dos doutores palavrosos.
Preciso é dizer: tem um público fiel. Gente que lhe dá os bons dias, gente que lhe retribui os votos de bom fim de semana. Que lhe dá parabéns por tudo e por nada: seja por concluir uma corridinha, seja por dar as boas-vindas ao Outono. Por dizer ele que Famalicão está uma cidade muito bonita, e logo concordam todos que está de facto muito bonita. E não está?
Mas também por prestar condolências às vítimas do acidente ocorrido no rio Douro. Das que eu vi, a publicação que mais ‘gostos’ lhe deu foi a da rendida homenagem ao Marco Paulo. O nosso homem em Bruxelas já não se fica pelos artistas cá do burgo. Um prócere político não faz por menos.
Também agora com a patine de eurodeputado já alcança tiques de estadista. Foi assim que ficamos a saber que Valência a braços com a tragédia conta com a solidariedade deste vulto ‘in the making’. Valha-lhes ao menos isso. Quer dizer, não deve haver um único valenciano que saiba quem ele é, mas não será isso a demovê-lo da cruzada humanista. Os grandes homens são assim, moldam a curvatura do espaço-tempo: a nós, humildes cidadãos, apenas nos compete viver na época deles.
Mas ainda a propósito de Valência: fica é a estranheza de o ver perorar sobre as consequências do aquecimento global. Juraria que é o mesmo que enfiou com um pavilhão industrial para dentro do parque da cidade. E que patrocinou juridicamente a tentativa de instalação de um parque industrial numa zona agrícola nacional. E que anos a fio fechou os olhos às descargas industriais no rio Pelhe. Ou seja, salvo melhor opinião, nesta matéria ambiental o melhor contributo do nosso tribuno foi mesmo a compra do Tesla. No dicionário há uma palavra para isto: sacripanta.
Até por isso, entre todas a minha entrada preferida foi aquela do diploma de doador de sangue que recebeu por ter alcançado a bonita marca de dez dádivas. Na vez do cidadão empenhado, fez publicar o dito diploma, acompanhando com umas palavras doces sobre a fraternidade universal. Havia nos comentários quem escrevesse que já ia acima das sessenta doações e quanto a diplomas, de rien. É investigar, amigo, e se isso o incomoda.
De modos que a chatice de ter um público fiel é que acaba por ser uma amante exigente. Nada interessado em escrutínios de espécie alguma, vejam bem; ninguém lhe pergunta nada sobre nada do que andou por aqui a fazer. O que só o incentiva a perseverar no chorrilho de banalidades. E posto isto, uma coisa tenho por certa: se o que o povo português aprecia sobremaneira é que lhe passem a mão pelo pêlo, então sai muitíssimo bem servido pelo Dr. Cunha.
Como o PSD, de resto, e este primeiro que todos. Imagine-se que lá de Bruxelas onde ganha o seu pão é que o sotôr manobra e parece que vai continuar a manobrar «a estratégia» do partido no distrito de Braga. Focado – focado não, focadíssimo! – em garantir os melhores candidatos em todos os concelhos do distrito. Famalicão incluído (sem risos, por favor).
Problema: pois sendo candidato único às recentes eleições para a comissão política distrital do partido, parece que o Dr. Cunha alcançou um resultado bastante abaixo dos proverbiais cem por cento. Quanto, não se sabe: desta vez o partido não divulgou os resultados agregados do distrito (ao contrário do que habitualmente faz).
Problemão: em particular no nosso concelho, o Dr. Cunha alcançou a modestíssima marca eleitoral dos 66%. Convenhamos, para quem concorria contra a própria sombra… já o Dr. Montenegro, que concorria igualmente contra a própria sombra, embora nesse caso para a comissão política nacional do partido, alcançou 95% dos votos na concelhia de Famalicão. Os mesmos tipos deram 95% a um e 66% a outro, é obra. De 95 para 66% é uma diferença assaz desconfortável, seja aqui, seja em Bruxelas. É muita gente que não te grama, Paulo. Mas pronto, como diz alguém que eu conheço, é lidar…
Eu quanto ao comum leitor não saberia dizer, mas acho deveras interessante que 34% dos eleitores de um qualquer partido político sintam a necessidade de, numa sexta-feira, ao fim da sua jornada de trabalho, se deslocarem ao centro da cidade para colocar um papelinho em branco dentro de uma urna. E ainda houve dez votos nulos. Esses já compreendo melhor, em vista da vontade muito humana de se entregarem «recados». Está tudo certo: é só o eleitor a querer entabular um diálogo franco e aberto com o seu eleito. A isto, sim, chamo democracia directa. Com recurso ao vernáculo, a cifrões e a genitália humana, como não podia deixar de ser. Faz parte…
Ainda assim, a verdadeira notícia deveria ser esta: então 66% dos votantes escolheram Paulo Cunha? Depois das sucessivas trapalhadas em que se tem visto envolvido, culminando na denúncia televisiva de um inquérito criminal ao projecto das pateiras do Ave? Ainda assim votaram nele?
Estranhei. E se estranhei foi só por isto: porque sei o quanto os militantes do PSD Famalicão prezam a ética na política. Confesso que andei ali um ror de tempo a matutar. Mas depois, hélas!, ocorreu-me. Pensem comigo: onde é que os militantes do PSD Famalicão matam a sua curiosidade sobre a actualidade local? No ‘Cidade Hoje’, por supuesto. É que, a ser assim, já faz todo o sentido. Pois o ‘Cidade Hoje’ nunca descobriu, e até hoje, que o Dr. Cunha anda nas bocas do mundo: por maus motivos, diga-se.
E se o ‘Cidade Hoje’ não sabe, como é que os militantes do PSD haveriam de saber?
Aproveito para perguntar: há alguém por aí que tenha o contacto do ‘Cidade Hoje’? É por um bom motivo, diga-se.
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