1. O projeto que não ficou na gaveta
Armindo Costa percebeu que uma política de terra queimada o conduziria inexoravelmente ao desastre. E não hesitou em dar continuidade aos projetos que estavam no terreno. No caso de Seide teria sido um suicídio político infantil deixá-lo cair.
Em dezembro de 2002, no lançamento da primeira pedra do Centro de Estudos Camilianos, que começava a ser erguido em S. Miguel de Seide, em frente á Casa-Museu de Camilo Castelo Branco, o arquiteto Álvaro Siza Vieira, autor do projeto, afirmou que estávamos a assistir a “uma espécie de milagre”.
“Habituei-me a ver os meus projetos a serem metidos na gaveta, quando mudava a cor política do poder”, explicou, então o arquiteto português que já conquistou duas vezes o Prémio Pritzker, galardão mundial, que é uma espécie de “Óscar da arquitetura”, que anualmente consagra um ou mais arquitetos vivos.
A coligação PSD-CDS acabava de pôr termo a duas décadas de governação socialista na Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, que cinco anos antes contratara Siza Vieira para reordenar o conjunto patrimonial e arquitetónico envolvente à Casa de Camilo.
Siza Vieira tinha na sua frente Armindo Costa, o novo presidente autarquia, em vez de Agostinho Fernandes.
Siza Vieira estava equivocado. Não tinha havido nenhum milagre. Estavamos somente perante uma alternância democrática no poder.
O arquiteto não deu conta que o novo presidente elegera o “projeto turístico-cultural de Seide S. Miguel”, que vinha de trás, como prioridade absoluta do seu mandato, iniciando, logo após a tomada de posse, uma marcação cerrada à tramitação da candidatura aos fundos europeus do Programa Operacional de Cultura (POC), onde o processo se encontrava.
E muito menos conhecia a perspicácia e o instinto político do novel presidente. Armindo Costa percebeu que uma política de terra queimada o conduziria inexoravelmente ao desastre. E não hesitou em dar continuidade aos projetos que estavam no terreno. No caso de Seide teria sido um suicídio político infantil deixá-lo cair.
A verdade é que Armindo Costa só descansou quando, em 21 de maio de 2002, conjuntamente com José Conde Rodrigues, o responsável máximo do POC, assinou o contrato de financiamento da obra.
Por S. Miguel de Seide já tinham passado o ministro da Cultura José Sasportes (de um dos governos do socialista António Guterres, que em 2001 inaugurou a Casa das Artes) e os gestores do POC, os quais deixaram todos louvores à qualidade do projeto e, sobretudo, à pertinência da sua construção.
Siza, sempre presente nesses momentos, não se cansava de explicar pormenorizadamente as suas ideias vertidas no projeto de arquitetura. No final da visita de José Sasportes, em 1 de junho de 2001, Siza Vieira, que acompanhei enquanto diretor do Departamento de Cultura da Câmara Municipal, confidenciava-me: “A obra é barata. Não vai haver problemas.”
A verdade é que existia um consenso alargado nos meios políticos e culturais, locais e nacionais, sobre a necessidade do equipamento e a importância que ele aportava ao processo de valorização e projeção da Casa-Museu de Camilo.
2. Quando o milagre aconteceu
No dia em que Siza Vieira se deslocou a Seide pela primeira vez, em 18 de março de 1997, para conhecer o local, após uma breve reunião na Câmara Municipal, ao percorrer os terrenos envolventes à Casa de Camilo, exclamou: “É aqui!”
Vendo bem, Siza Vieira tem razão. Sim, houve um milagre em Seide. Porém, aconteceu uns anos antes de 2002. E foi ele o taumaturgo. A história conta-se em dois tempos.
No dia em que o arquiteto se deslocou a Seide pela primeira vez, em 18 de março de 1997, para conhecer o local, após uma breve reunião na Câmara Municipal, ao percorrer os terrenos envolventes à Casa de Camilo, exclamou: “É aqui!”
E todos os que o acompanhavam pararam, estáticos e silenciosos, olhando para o seu braço apontando para a Casa-Museu à frente do nosso olhar. Naquela altura, já tínhamos deixado para trás os terrenos da Casa do Nuno, também conhecida por Chalé Silva Pinto, por onde entramos, e pisávamos os terrenos da paróquia, contíguos daqueles.
Siza prosseguiu: “Tirando a casa a destruir, o resto fica tudo, a vinha, a paisagem rural.” O sol não rebolou. Mas naquele instante ergueu-se um clarão intenso de luz branca iluminando a Casa de Camilo, aproximando-a dos nossos olhares.
Sem darmos conta, a distância entre nós e a Casa Amarela encurtou-se, e a estrada em frente, que corta os dois espaços, por artes celestiais, desapareceu. A Casa de Camilo estava ao alcance das nossas mãos! Era inevitável que este poder transcendental desencadeasse transformações imprevisíveis e incontroláveis. Foi o que aconteceu com esta visão Sizaniana!
Os sonhos, e os planos pensados por autarcas e técnicos, de um momento para o outro, envelheceram e ficaram reduzidos a cinzas. Tudo volta à estaca zero.
Afinal, o Centro de Estudos Camilianos (CEC) não ia ser construído, tal como Agostinho Fernandes anunciara em junho de 1991, no encerramento do Centenário da Morte de Camilo.
O equipamento não iria nascer nos terrenos da quinta da Casa de Camilo, nem nos terrenos sobrantes da quinta da Casa de Nuno, que o presidente da Câmara Antero Martins, antecessor de Agostinho Fernandes, comprara e loteara em 1982.
“É aqui, no passal”, confirmou Siza Vieira! Nem que para tal a residência paroquial tenha que ir abaixo. A escolha do renomado arquiteto era uma espécie de ordem, que ninguém ousou discutir. Mesmo sabendo-se que esta opção iria levantar uma catadupa de problemas, e deixava antever potenciais conflitos com a Igreja, e, viu-se depois, com os poderes civis.
Uma situação paradoxal. De repente, o pároco vê-se privado da residência, a Comissão Fabriqueira, que apressadamente fez entrar, no Departamento de Urbanismo, um projeto para “restaurar e ampliar “a Igreja Paroquial, fica impedida de a destruir.
Por seu lado, a Junta de Freguesia era obrigada a mudar de local, largando a Casa do Nuno, e a associação ADERE intimada a encontrar alternativa para o recinto desportivo que construiu nos seus jardins.
3. A Casa do Nuno e a Casa da Cultura
Siza Vieira tinha uma ideia de conjunto do património arquitetónico da área envolvente da Casa de Camilo, que queria interligado, constituindo um todo na sua diversidade, e que se completava nas diferentes funcionalidades. Um triângulo formado por três casas (Camilo, Nuno, Cultura) apontado à Casa-Museu.
Siza Vieira não demorou muito a consagrar as suas ideias, enviando à Câmara Municipal, em outubro de 1998, o estudo prévio e, no ano seguinte, o “Anteprojeto de arquitetura de adaptação da Casa do Nuno a Casa de Hóspedes e a construção da Casa da Cultura”, que o Executivo Municipal aprovaria, em 25 de outubro de 1999, por unanimidade.
São estes os dois primeiros projetos que escala para avançar, deixando os outros como sugestões para a “reestruturação da área, a projetar oportunamente”.
A revolução urbanística era mesmo para ir em frente. Como ele escreveu na memória descritiva, “o novo edifício será implantado onde existe, atualmente, a casa do pároco, que será deslocada para outro local”. E a Casa do Nuno seria adaptada a Casa de Hóspedes. Ou a “Casa do Escritor”, como chegou a ser identificada pela autarquia.
O programa previa a construção de duas suites para hóspedes, uma sala de estar e uma cozinha típica com fogão de lenha. Além de que o jardim seria tratado e os arruamentos redesenhados de “modo a criar também o acesso ao novo edifício (Casa da Cultura), sempre a partir do portão existente a recuperar”.
Sejamos justos. Siza Vieira tinha uma ideia de conjunto do património arquitetónico da área envolvente da Casa de Camilo, que queria interligado, constituindo um todo na sua diversidade, e que se completava nas diferentes funcionalidades. Um triângulo formado por três casas (Camilo, Nuno, Cultura) apontado à Casa-Museu.
4. A Casa do Nuno e o campo armadilhado
Apesar do relevo nacional da Casa de Camilo, escassearam ao longo do tempo os meios e os instrumentos legais para a defender e proteger dos ataques de vandalismo.
Quando Siza foi a Seide e fez o périplo pelos terrenos à volta da Casa de Camilo andava longe de imaginar o campo armadilhado que pisava. Em frente à Casa de Nuno deparou-se com os destroços do Chalé amontoados.
Na altura, num diálogo rápido, falei-lhe da importância do imóvel na memória Camiliana e Siza Vieira ficou interessado em saber mais: “Arranje-me informação.”
Alexandre Cabral, no Dicionário de Camilo Castelo Branco, descreve com detalhe a história desta moradia e a sua ligação a Camilo. Silva Pinto, um amigo do escritor, decidiu, depois de umas desavenças, aproximar-se de Seide, construindo a sua residência junto do mestre. Camilo arranjou-lhe arquiteto (o “famoso” mestre pedreiro Malvar, o mesmo que construiu a Igreja Paroquial, que Camilo ridiculariza, nos “Echos Humorísticos do Minho”), acompanhou as obras, e, ao que parece, suportou as despesas.
Porém, os destroços das ofensivas dos “hunos modernos”, de que falava Herculano, espalhavam-se por todo o jardim.
O campo de jogos e o balneário da ADERE eram ostensivamente insultuosos. Não sei se Siza ignorava ou não que a Câmara concedera àquela associação o direito de superfície, através de um processo rocambolesco e irresponsável.
Recusei sempre fazer qualquer proposta, dizendo ao presidente do clube desportivo, António Santos, que aqueles terrenos eram uma “reserva” para um projeto futuro relacionado com Camilo.
O crónico candidato do PS à Junta de Freguesia procurou outros caminhos permeáveis ao compadrio, tendo alcançado o impensável.
O que, de todo, Siza não adivinhou foi a atitude da Fabriqueira de Seide, de entregar no Departamento de Urbanismo um projeto para restaurar e ampliar a Igreja Paroquial. Os sinos tocaram a rebate. Tanto mais que foi junto ao processo um parecer da Comissão Arquidiocesana de Arte Sacra e Obras, emitido a 10 de dezembro de 1997, que é mais do que uma bênção: “Aprova a globalidade do projeto.”
Siza recebe o projeto já chumbado. Foi decisiva a intervenção da Comissão Especial de Apreciação de Projetos, da Câmara Municipal, que se opôs frontalmente, remetendo o processo para o arquiteto. Era da competência desta Comissão, prevista no regulamento do PDM, pronunciar-se sobre os processos de licenciamento que envolvessem “valores patrimoniais”.
É oportuno sublinhar que, apesar do relevo nacional da Casa de Camilo, escassearam ao longo do tempo os meios e os instrumentos legais para a defender e proteger dos ataques de vandalismo.
Basta referir que só em 1978 foi classificada como imóvel de interesse público. Mesmo assim – grave falha – sem a criação de uma área de proteção especial “non aedificandi”.
Em 1994, deu-se um passo gigante para a salvaguarda deste tesouro nacional sediado em Seide, quando o Departamento de Cultura elaborou a Carta do Património do PDM. Pela primeira vez é mencionado o “conjunto patrimonial” camiliano, propondo-se a sua classificação, bem como da Casa do Nuno.
5. Uma “Rota de Camilo” sem a Casa do Nuno
Em S. Miguel de Seide perderam-se vinte anos para derrotar um oportunista. Quantos vamos de necessitar para reabilitar e dar futuro à Casa de Nuno/Chalé Silva Pinto? Já agora, que sentido faz criar uma “Rota Camilo” com a sua exclusão? Fico curioso para saber o que vai dizer-se aos visitantes.
Como é público e notório Siza Vieira deixou para trás a Casa do Nuno, amputando a sua intervenção, e logo na parte mais criativa e potencializadora da investigação da obra camiliana, bem como da reabilitação e atratividade deste recanto minhoto. O seu projeto inicial ficou assim circunscrito à Casa da Cultura/Centro de Estudos Camilianos, e mesmo aqui viu-se obrigado a improvisar um acesso transitório.
Anuncia-se, nestes dias de 2021, quase duas décadas após o início da obra, que Siza regressa a Seide para concluir (não o seu projeto), mas para abrir a entrada para o Centro de Estudos Camilianos pela Casa do Nuno, como fora projetada.
O capricho e a prepotência do presidente da ADERE reinaram o tempo que quiseram. Deve ter sido esta longa resistência que ditou o elogio que recebeu do edil, louvando-lhe a “disponibilidade para deixar de lado as questões que são periféricas”. Agora? Nesta circunstância, emerge a dúvida. Por que é que a Câmara (esta e as anteriores) resistiram a ordenar a demolição da residência ilegal, construída nos anos 90, pelo cidadão António Santos, dentro do perímetro de proteção da Casa de Camilo?
O mais desolador é escutar e ler que Siza Vieira findou a sua intervenção de forma inglória. Fez a entrada ampla para o Centro de Estudos Camilianos, como queria, mas entregou a Casa do Nuno à Junta de Freguesia, donde nunca saiu.
Varreu-se para o caixote do lixo, de forma subreptícia, sem qualquer explicação pública, esta memória, um património material e imaterial, extremamente expressivo do relacionamento de Camilo com os amigos, e cheio de afetividades do seu núcleo familiar: o Chalé do filho Nuno e de sua mulher Ana Rosa Correia, de seus netos, e local de recolhimento de Ana Plácido após a morte do marido.
Perderam-se vinte anos para derrotar um oportunista. Quantos vamos de necessitar para reabilitar e dar futuro à Casa de Nuno/Chalé Silva Pinto? Já agora, que sentido faz criar uma “Rota Camilo” com a sua exclusão? Fico curioso para saber o que vai dizer-se aos visitantes.
Na hora da despedida Siza poderá concluir que não cometeu o pecado da gula (uma obra sem um frémito de alma!) incapaz de assombrar a Casa do Mestre da Literatura Ibérica. Poderá orgulhar-se de ter restaurado a Igreja Paroquial e de oferecer-lhe um Centro Cívico e Pastoral.
Certamente pesar-lhe-á na consciência a incompletude do projeto idealizado. Não apenas pela Casa do Nuno, mas, acima de tudo, pelo esquecimento, senão mesmo pela marginalização de Ana Plácido.
Deixou escapar a oportunidade quando fez o arranjo da Praça, à entrada para a Casa-Museu, que ostenta o seu nome. Colocou no centro o busto de Camilo! Dá que pensar. Ana Plácido, cujo único “pecado” foi amar Camilo: “O Homem Fatal” (perdi a conta às vezes que me diverti com Alexandre Cabral sempre que lançava no ar o trocadilho “Homem ou Mulher fatal?”). A donzela Ana Plácido desfez as dúvidas proclamando ao marido Pinheiro Alves e seus amigos: “Camilo é o homem de quem gosto e o único capaz de fazer a minha felicidade.”
Não é uma questão de género. É o preconceito insidioso que persiste e agride. Uma oportunidade que Siza desperdiçou, desbaratando a sua autoridade, para quebrar a redoma da hipocrisia colada à personagem romântica que nos habita e toleramos. A verdade é que o tempo que vivemos projeta-nos uma Ana Plácido feminista ‘avant la lettre’, dona do seu corpo e do seu destino, que “sacrificou a Camilo a sua reputação social, o seu bem-estar e até a sua ambição literária” (idem).
Em Seide houve muita dor e sofrimento. Porém, triunfou o amor!
Volta Siza, estás perdoado!
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