Em 19 de Outubro de 1935 sai para as bancas, o número inaugural do semanário “Notícias de Famalicão”, tendo como diretor e administrador Francisco Rebelo Mesquita, de 25 anos. Na redação, estão com ele três rapazes mais novos: Armando Bacelar (16 anos), Lino Lima (18) e Folhadela de Macedo (22).
Os quatro tinham nascido na segunda década do século XX e tornam-se figuras maiores da história e da sociedade famalicense. O jornalismo aproxima-os e a amizade floresce no convívio e nos sonhos de juventude. A opção de vida, sobretudo a política, extremada pela ditadura salazarista, separa-os para sempre.
O “Notícias de Famalicão” dá-lhes uma tribuna de intervenção e de aprendizagem, sobretudo para Lino Lima e Armando Bacelar, visto que Rebelo Mesquita já tinha experiência profissional no setor. Nas “Memórias de Tempos Idos (Separata do Boletim Cultural, nº 13, II Série, Câmara Municipal de Famalicão), Armando Bacelar retrata bem esta experiência: “Frequentávamos ambos [Armando Bacelar e Lino Lima] a redação desse semanário, onde assistíamos aos trabalhos gráficos e fazíamos a revisão de provas, conversando com o diretor, o jornalista Francisco Rebelo Mesquita, que então já estava “acomodado”, mas que antes fora do jornal “A Montanha”, do Porto, de tendências progressistas tais que a censura determinara a extinção “.
Folhadela de Macedo faz tarimba, alimentando a coluna “Vultos e Factos”, que o vão projetar na imprensa regional e local.
Em 1936, Lino Lima vai para Coimbra frequentar a Faculdade de Direito, mas não larga os amigos, nem se desprende da família e da terra, e muito menos do “Notícias de Famalicão”. Ao longo do primeiro ano do curso, mantém uma colaboração regular, embora intermitente, com uma rubrica que intitulou “Postais de Coimbra”.
Inicia-se em 11 de janeiro, escrevendo, sem interrupção, cinco crónicas semanais. Só no final do ano (novembro e dezembro), regressa com mais três “Postais”, depois de umas longas férias de três meses. Ao todo são oito pequenas crónicas, versando temas sociais e culturais, por vezes imbuídas de algum romantismo e de devaneios juvenis, servidos, sublinhe-se, por uma prosa simples e enxuta, onde aflora um espírito crítico e observador, e com um exercício estilístico que o futuro consagrará, adivinhando-se uma inclinação jornalística, que a fortuna não favoreceu, acabando preterida por outras opções.
POSTAIS DE COIMBRA
Esta participação jornalística de Lino Lima mostra uma fase de transição lenta, sem rotura com a terra, a família e os projetos que abraçou na adolescência com os amigos.
Só na quinta crónica aborda um tema inteiramente relacionado com a cidade de Coimbra. Aliás, a primeira é dedicada a uma récita de caridade a que tinha assistido no cinema Olímpia, em Famalicão, que elogia e deixa-o entusiasmado.
Um “Postal de Coimbra,” só porque foi aí escrito, que aproveita para incentivar os amigos (R.M., A.M. e A.B., assim grafados) a escreverem a “revista de costumes locais”.
Diga-se, que Lino Lima manifesta grande apreço pelo teatro, e em particular pela revista, à qual volta na quinta crónica, desta vez, exibida em Coimbra.
Não se fica por aqui a colaboração de Lino Lima no “Notícias de Famalicão,” neste ano de 1936. Acontece, que o semanário de Rebelo Mesquita comemora o primeiro aniversário, publicando um número especial, e Lino Lima esmera-se, escrevendo quatro artigos (duas reportagens e dois textos de reflexão), diria que, um mais introspetivo e poético, e outro de cariz sociológico, significativamente intitulado “Epopeia do Trabalho”: “Um título de um poema heroico, que milhares de braços escrevem todos os dias, a todas as horas, neste concelho de Famalicão”, nas dezenas de fábricas, espalhadas pelas aldeias “cheias de bucolismo, onde o homem viveu, tantos anos seguidos – amarrado à rabiça do arado – uma vida patriarcal, os olhos postos na terra, a alma elevada ao céu”.
Lino Lima põe em paralelo o trabalho ancestral no campo e o dos operários nas fábricas, enfatizando: “Era também uma epopeia de trabalho que ele escrevia pouco a pouco, um verso agora outro logo…”.
Uma prosa poética que põe em contraste duas épocas – a ruralidade milenar e a industrialização moderna, tão diferentes e tão semelhantes, “uma grandiosa epopeia do trabalho”.
Quando Lino Lima regressa aos “Postais”, no final de 1936, depois deste número especial, já Rebelo Mesquita o nomeara “redator-delegado” em Coimbra, com direito a fotografia na última página do seu semanário.
Apesar deste empenho, Lino Lima não era dos mais ativos colaboradores. Esse papel vai para Armando Bacelar, retido em Famalicão a preparar em Braga o ingresso na Universidade: “Eu vinha frequentemente a casa de meu pai, donde continuava a conviver com os amigos, a frequentar a biblioteca, a trazer dela livros para casa e a colaborar muito no ‘Notícias de Famalicão’, publicando, assiduamente, desde o primeiro número, poesia.”
“DEIXEM-NOS CAMINHAR”
Rebelo Mesquita reconhece a importância destes seus colaboradores e, no referido número especial do primeiro aniversário, aproveita para nomear Armando Bacelar “Redator” e Abel Folhadela de Macedo “Secretário da Redação”.
Rebelo Mesquita vai mais longe, escreve um longo editorial “Primeira Etapa”, onde faz o balanço percorrido, traça o caminho – “Viemos para esta luta pela terra e pela Pátria, com consciência e tranquilidade” –, e apela: “Deixem-nos caminhar”.
No centro da primeira página coloca a sua foto, e a seu lado, a de Armando Bacelar e Folhadela de Macedo. Dir-se-ia que as relações de amizade, de cooperação e companheirismo deste grupo de jovens ficam definitivamente seladas. Sem dúvida. Porém, o ponto alto desta consagração ocorre no “almoço de confraternização” do primeiro aniversário, realizado em 31 de outubro de 1936.
Os discursos então proferidos dizem tudo. Armando Bacelar declara: “Saúdo o meu diretor e amigo e afianço-lhe que jamais deixarei de prestar colaboração ao ‘Notícias de Famalicão’”.
Por seu lado, Lino Lima – “Um moço de talento, um orador de largo futuro, enfatiza o repórter de serviço” – afirma: “Eu sei, hoje, quanto vale o Rebelo. Não tem dificuldades porque as sabe vencer. Eu mesmo vou para Coimbra convencido que, em pouco tempo junto do nosso diretor, já sou um jornalista. É que o ‘Notícias’ é uma escola de jornalismo. Ele é o mestre” (“Notícias de Famalicão”, 31 de outubro, 1936, ano II, nº 55).
Não foi além de 1936 a colaboração de um e de outro. Se o jornalismo os juntou, a política vai separá-los. Bacelar rememora esta relação de amizade que ia muito para além do jornalismo. Conversavam e emprestavam livros: “Rebelo Mesquita chamou-me a atenção para a obra do romancista e também jornalista Ferreira de Castro que pouco antes publicara ‘A Selva’, que me emprestou e que logo li avidamente.” E acrescenta: “Dávamos grandes passeios pelo Vinhal e arredores desta então Vila. Passávamos tardes inteiras de conversa amena no Café Moderno…”.
Todavia, os caminhos que Armando Bacelar começava a percorrer quando repetia em 1936/1937, no liceu em Braga o acesso à faculdade, já indiciavam a rotura. Andou sempre ligado aos movimentos de ativismo estudantil, quando não era ele a dinamizá-los.
Porém, é em Coimbra que tudo muda. Em 1937, Armando Bacelar vai cursar direito na universidade, onde Lino Lima já se encontrava há um ano. Os dois envolvem-se na agitação estudantil e participam no emergente movimento cultural e estético do neorrealismo, convivendo, no afamado ‘quarto’ de Armando de Castro, com um punhado de intelectuais, poetas, romancistas, entre os quais, Joaquim Namorado, João José Cochofel e Fernando Namora. É uma geração que lança as bases teóricas desta corrente estética e política, cria revistas e jornais (“Vértice”, “O Diabo”, etc..), e publica as suas primeiras obras literárias.
A politização, no calor dos debates e no estudo dos grandes problemas nacionais e internacionais, com o laboratório da guerra civil de Espanha a ferver, era inevitável.
No final do curso, Lino Lima afirma: “Tornei-me Político” (“Romanceiro do Povo Miúdo, Memórias e Confissões”, 1991), aderindo pela mão de Armando Bacelar ao PCP, que se antecipa ao seu amigo na luta clandestina. Regressam às suas terras, com o final da grande guerra no horizonte. Montam escritório de advocacia no centro da urbe. Bacelar, um ano mais tarde (1944), só depois de cumprir em Braga o serviço militar. Todavia, a grande motivação que carregam, é prosseguir o combate político à ditadura, iniciado em Coimbra. A história regista que foram eles que trouxeram o PCP para o Vale do Ave e o Norte do País (José Pacheco Pereira, “Um Biografia, Álvaro Cunhal, Vol. II”).
LUTAS INTESTINAS NA UNIÃO NACIONAL
O ambiente político que encontram em Famalicão é muito diferente daquele que deixaram quando abalaram para Coimbra. Diga-se que não foram só Lino Lima e Armando Bacelar que mudaram. O mesmo aconteceu aos seus amigos de adolescência. Quis o destino que percorressem caminhos opostos. O embate era fatal!
Folhadela de Macedo frequenta a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, obtendo o diploma de Professor Liceal do Ensino Particular, que lhe vai ser útil para dirigir o Externato Camilo Castelo Branco, que funda em 1945. Ainda tenta, sem sucesso, a admissão à Escola Militar. Todavia, a grande mudança é a sua adesão ao regime ditatorial do Estado Novo.
Os ânimos dentro da União Nacional, neste período do pós-guerra, andavam assanhados. José de Oliveira, o grande líder, desde a primeira hora, do salazarismo em Famalicão, ocupava o Palácio dos Falcões, em Braga, e com a batuta do cargo de Governador Civil, que exercia desde 1939, mandava no município de Famalicão (Vasco de Carvalho, “Biografias”, 1959).
Pela frente tinha o seu arquirrival Francisco Alves e o seu clã, que a Junta Militar nomeara para a presidência da Câmara, poucos meses após o golpe de Gomes da Costa, em 28 de maio de 1926.
A hora do ajuste de contas chegara. Depois dos ensaios falhados de colocar na presidência da Câmara Rodolfo Aguiar e José Jácome, indigita Álvaro Folhadela Marques, que toma posse em fevereiro de 1945. Nasce o reinado dos Oliveira-Folhadela.
Porém, o caminho continuava armadilhado, com os ‘Alves’ de Requião a manter o domínio no Conselho Municipal, que elegia a vereação. Valeu a Álvaro Marques ter a seu lado, como conselheiro municipal e vereador, o seu criador e mentor político e familiar, José de Oliveira, que, entretanto, deixara o Governo Civil, assumindo a presidência da distrital da União Nacional.
Folhadela de Macedo, que pertencia ao grupo, por afinidades políticas e familiares, vai fazer carreira de vereador (1945-1952), na edilidade de Álvaro Marques, já depois de ter sido nomeado Comissário Concelhio da Mocidade Portuguesa, que instala na Rua Adriano Pinto Basto e leva para o Colégio Camilo Castelo Branco (Artur Sá da Costa, “O Golpe Militar de 28 de Maio de 1926 e as Autarquias Locais, As Portas da História, Vol. II”, 2015).
Rebelo Mesquita não escondia as suas simpatias pelo regime, e não poupava a adjetivação na hora do elogio ao chefe e à sua obra. Ao seu dispor tinha, por essa altura o “Notícias”, e a partir de 1949, o “Jornal de Famalicão”. E deixou clara a sua posição ao escrever no “Introito”, com que abre o seu novo semanário: “O Governo Nacionalista ter-nos-á a seu lado, colaborando (…) combatendo ardorosamente (…) a doutrina comunista que se espalha como gordura em alvo lençol de linho.”
Quando Rebelo Mesquita escreve estas palavras já os seus amigos Lino Lima e Armando Bacelar tinham sido presos (a primeira de várias vezes) pela PIDE, a Polícia Politica do Regime.
(Esta crónica é uma adaptação do Prólogo do livro “Lino Lima, Uma Vida pela Liberdade”, de Artur Sá da Costa, no prelo)
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