Há 50 anos, por estes dias, nasceu em Vila Nova de Famalicão a Livraria Júlio Brandão. Instalou-se no résdo-chão do prédio que hoje é ocupado por uma sapataria, no primeiro quarteirão, na Rua Adriano Pinto Basto, do lado direito, quando se desce dos jardins da Câmara mMunicipal.
Naquela época, no início da década de 1970, havia, do outro lado da rua, o Café Nara, famoso pelas tertúlias da oposição democrática, e pela frequência de jovens (rapazes e raparigas) irreverentes, contrastando com as poses snobes, pretensamente aristocráticas, dos frequentadores da Confeitaria Moderna.
Por essa altura, ainda soprava a brisa da “Primavera Marcelista”, decorrente do afastamento de Salazar, em 1968, que descomprimia o ambiente social e criava expectativas de desanuviamento político.
Nada de essencial mudou – hoje percebe-se isso melhor – mas a propaganda governamental de “liberalização” do regime impulsionou as forças democráticas a explorar todas as brechas e contradições que corroíam e fraturavam o pesado Estado Corporativo.
É este o lance audaz e oportuno protagonizado por Macedo Varela (advogado) e Manuel Cunha (empregado de escritório na fábrica de Oliveira Ferreira, em Riba de Ave) quando se abalançam na fundação da Livraria Júlio Brandão.
Líderes da oposição democrática e membros do Partido Comunista Português, então clandestino, os dois constituiram uma sociedade por quotas, a Cunha & Varela Lda., e criaram a livraria para difundir “a literatura progressista, nacional e também estrangeira” (Macedo Varela, “Momentos de Resistência”, catálogo da exposição, museu Bernardino Machado, org. Artur Sá da Costa, 2000).
Trata-se, no fundo, de prosseguir, por outros meios, a luta contra a ditadura, agora sobre a batuta de Marcelo Caetano, disponibilizando informação e acesso a textos políticos de esquerda que eram inacessíveis no mercado livreiro português.
As editoras existentes não arriscavam porque a censura (apesar de ter mudado de nome) continuava vigilante e ativa. Varela e Cunha nunca esconderam ao que vinham. No depoimento que recolhi para o referido catálogo da exposição “A Resistência Cultural ao Fascismo na década de 60 e 70 em Vila Nova de Famalicão”, Macedo Varela afirma: “A Livraria foi criada para ser como foi um instrumento de difusão cultural e política”.
Este era o objetivo central do projeto. Colocar no mercado obras de natureza política, nunca antes editadas, ampliando e diversificando a oferta, e sobretudo disponibilizando o acesso a autores marxistas, e desta forma municiando os militantes de esquerda de instrumentos teóricos para a sua formação e intervenção política.
Para o conseguir tornava-se necessário fundar uma editora. Foi o que Macedo Varela e Manuel Cunha fizeram. Meteram os papéis a requerer a fundação da Editora Júlio Brandão. Porém, o despacho da Direção dos Serviços de Censura, de 21 de fevereiro de 1972, pôs fim às ilusões: um e outro sócio “não oferecem garantia de cooperar na realização dos fins superiores do Estado” (Proc. 2180/69/SR-Direção dos Serviços de Censura).
A alternativa era a edição de autor, que a ditadura nunca se atreveu a proibir. Impôs a ameaça da apreensão à posteriori. Foi a via escolhida. O editor era o autor ou o tradutor, ficando a livraria responsável pela distribuição. É o que consta da ficha técnica dos 15 títulos editados. O revés sofrido acelera o plano editorial.
Lançam-se avisos aos amigos e apoiantes do projeto (a grande maioria estudantes universitários) para indicarem e traduzirem textos de literatura marxista, e escreverem estudos sobre temas da atualidade política nacional.
É aqui que emerge a figura do conceituado intelectual José Pacheco Pereira, à época um ativista político da corrente maoista, estudante na Universidade do Porto, com incursões de agitação política nos centros operários de Riba de Ave e Pousada de Saramagos.
A sua figura torna-se influente e mesmo determinante na escolha e tradução dos autores marxistas/maoistas quando aceita assumir o papel de editor de todos os títulos da coleção “Cadernos Vanguarda”.
Mas Pacheco Pereira não fica por aqui. Propõe a publicação das “Memórias de um Operário” (dois volumes) de José Silva, sindicalista e fundador do PCP no Porto, um manuscrito que, segundo diz, foi-lhe entregue por um amigo do autor, entretanto falecido. E publica nesta coleção o seu estudo “Questões Sobre o Movimento Operário Português e a Revolução Russa de 1917”.
No seu blogue Ephemera, Pacheco Pereira afirma que foi ele quem traduziu a “maioria” dos títulos da coleção “Cadernos Vanguarda”, num total de seis, e permitiu que o seu pseudónimo “Álvaro Machado” fosse utilizado como tradutor em todos eles.
De facto, o seu nome aparece como tradutor, conjuntamente com o de Maria Helena Cunha, nos dois primeiros títulos, e o pseudónimo “Álvaro Machado” como editor nos outros quatro títulos, estendendo-se à coleção de “História e Filosofia”. A única exceção é o título “Princípios do Leninismo”, cuja tradução e edição é atribuída a José Ricardo, pseudónimo adotado por José Elísio.
Em bom rigor, Pacheco Pereira traduziu e editou os dois primeiros títulos dos “Cadernos Vanguarda” (Da Prática, de Onde Vêm as Ideias Justas, de Mao Tse Tung, e Cartas Sobre o Materialismo Histórico, de F. Engles), dando a cara – foi o único a fazê-lo – isto é, assumindo a responsabilidade editorial com o próprio nome, conjuntamente com Maria Helena Cunha.
Para os outros quatro títulos desta coleção permitiu que o seu pseudónimo “Álvaro Machado” (aliás, dois sobrenomes pouco conhecidos) fosse utilizado, como de resto aconteceu.
É esta a conclusão a que Amadeu Gonçalves chega (Blogue Do Presente) ao fazer a catalogação dos títulos editados. Gonçalves fica espantado por verificar que o título “O Revisionismo Contemporâneo, significado e funções”, de Alfred Kosing tem a assinatura de dois editores: Álvaro Machado e Telmo Machado.
Para quem acompanhou esta febril atividade, como é o caso, está em condições de afirmar que a tradução foi feita conjuntamente por Telmo Machado e Eduardo Perez Sanchez, abdicando o último da autoria. E quem traduziu os outros três títulos desta coleção? Macedo Varela, em conversa recente que teve comigo, quando este artigo estava em preparação, esclareceu que todos traduziram, inclusive, ele próprio.
José Elísio, sempre me garantiu que traduziu “O Leninismo e a Libertação dos Povos Oprimidos e outros textos”, de Ho Chi Minh, e o “Materialismo Dialético, Materialismo Histórico”, de J. Stalin. Macedo Varela traduziu “Questões do Leninismo” da coleção “História e Filosofia”. De todo o modo, estas escolhas foram feitas em diálogo entre Macedo Varela e José Elísio.
Aqui chegados podemos concluir: a) ”Álvaro Machado” serviu de chapéu de proteção de todas as traduções marxistas, exceto no título do pseudónimo José Ricardo e b) Conhecemos todos os tradutores, exceto a autoria de “O Sionismo e o Imperialismo”, de David Bernstein. Porque será que ninguém reivindica a tradução deste título? Esta questão remete-nos para a avaliação da escolha dos textos traduzidos. Sem dúvida, uma seleção eclética, mas contraditória com os objetivos da editora.
Todas estas confusões resultam do facto de a Livraria Júlio Brandão não ser oficialmente editora, a que acrescem as condições de repressão então existentes, levando as pessoas a tomar cautelas. De qualquer modo, quem a PIDE/DGS incomodava eram os gerentes da livraria e das tipografias.
Manuel Cunha, sócio-gerente, foi ouvido na Delegação do Porto da DGS (Auto de declarações de 16/3/1972) afirmando que os pseudónimos de Álvaro Machado e de José Ricardo são de Macedo Varela, o que contribui mais para a confusão, embora aqui se entenda a assunção de responsabilidades por parte da livraria.
Num ponto Manuel Cunha foi claro, ao responder ao inquiridor que José Pacheco Pereira era o conhecido cidadão José Pacheco Pereira!
No meio deste labirinto, Carlos Costa, o ex-dirigente do comité central do PCP, atualmente editor do blog Socialismo, agitou a poeira ao escrever no prefácio à reedição da obra “Princípios do Leninismo”, de J. Stalin, recentemente publicada pela sua editora, que foi “Lino Lima que traduziu e editou” aquela obra, em 1972, para a livraria Júlio Brandão.
Carlos Costa garante que o pseudónimo José Ricardo, “com alta probabilidade de acerto”, é Lino Lima! Nada mais errado. José Elísio, meu amigo há mais de meio século, foi o tradutor desta obra de Stalin, e só adotou o pseudónimo de José Ricardo porque à época era de menor idade. E foi José Ricardo “porque calhou”, diz José Elísio. Duas décadas depois, Lino Lima utiliza para escrever as suas memórias o pseudónimo de José Ricardo no “Romanceiro do Povo Miúdo, Memórias e Confissões”. Coisas do acaso!
Acompanhei o trabalho de tradução de José Elísio assim como de Telmo Machado e Eduardo Pérez Sanchez, meus amigos e com quem falei destas pequenas controvérsias, não restando qualquer dúvida sobre a autoria destes trabalhos.
A vida da Livraria Júlio Brandão foi breve e atribulada, mas intensa. Abalou o mercado livreiro português, pelo arrojo em editar livros políticos de autores marxistas e maoistas, considerados malditos pelo regime do Estado Novo, e abriu portas aos jovens investigadores portugueses. Como José Pacheco Pereira.
A Livraria Júlio Brandão teve a visão de fazer uma distribuição nacional dos livros, usando várias empresas. E o sucesso veio. Como diz Macedo Varela, “vendia-se tudo”. Andou à frente da PIDE/DGS. Quando a ordem de apreensão chegava já se tinham vendido muitos exemplares. E funcionava a venda cúmplice por debaixo do balcão, com clientes ávidos pelas novidades.
Na época faziam-se grandes edições, correndo-se grandes riscos sempre que a polícia política apreendia as edições na tipografia. Foi o que aconteceu com o segundo volume das “Memórias de Um Operário”, de José Silva, com uma tiragem de 3.000 exemplares. O maior rombo nas finanças da empresa de Manuel Cunha e Macedo Varela.
O caso da Livraria Júlio Brandão não é único no país. Longe disso. Faz parte de um movimento cultural e político que explodiu, um pouco por todo lado, com incidência nas grandes cidades, especialmente em Lisboa, Porto e Coimbra, onde surgiram, neste período final da ditadura, novas editoras, por vezes sob a forma de cooperativas culturais.
Se a livraria Júlio Brandão foi efémera (durou pouco mais de dois anos) o seu exemplo está registado na história editorial portuguesa, integrando um núcleo de editoras políticas que desafiaram e combateram a ditadura. O seu prestígio e notoriedade perduram ainda hoje, mesmo além-fronteiras. E suscitou o interesse da Academia.
Acontece que, na Universidade de S. Paulo, o prof. Flamarion Maés, investiga, há anos, este movimento editorial português, embora estendendo o sua investigação aos primeiros anos da Revolução de Abril 1974, tendo publicado em 2019 “Livros que Tomam Partido, Edição e Revolução em Portugal, 1960-1980”, incluindo a livraria Júlio Brandão nessa investigação.
Isto é, os estudos mostram que a Livraria Júlio Brandão deu um contributo nos combates à ditadura, desmascarando o falso liberalismo de Marcelo Caetano, e disponibilizando informação para o desenvolvimento da consciência política dos portugueses, persistindo hoje como referência à escala global.
Entre as múltiplas conclusões que o prof. Flamarion Maés contabilizou conta-se a existência de 138 editoras ativas naquele período, das quais 102 editoras políticas. Neste grupo entra a Livraria Júlio Brandão.
Aliás, se tomarmos em conta o período entre 1968 e 1973 fica-se a saber que se criaram 33 editoras, das quais 26 se dedicavam à edição de livros políticos. Flamarion Maés não tem dúvidas. Estas editoras “colaboraram efetivamente para que ocorressem mudanças na sociedade portuguesa (…) e foram, de certa forma, agentes dessas mudanças”.
Dá-se o caso, de duas décadas antes deste estudo do prof. Flamarion Maés, da Universidade de S. Paulo, o Museu Bernardino Machado ter organizado a exposição já referida “Resistência cultural ao fascismo na década de 60 e 70 em V. N. de Famalicão”, onde tive a oportunidade de escrever a introdução para o catálogo, apresentando a Livraria Júlio Brandão como um exemplo entre múltiplas iniciativas que ocorreram nesse período no território de Famalicão, com particular destaque na cidade.
Acentuei que estávamos perante um movimento político-cultural muito diversificado, abrangendo vários setores da sociedade, com o envolvimento de vastas camadas populacionais, com realce para os jovens.
Chamei a atenção de que a “resistência e combate ao fascismo fizeram-se de muitas e diversificadas formas e nas ocasiões possíveis e impossíveis”. Entre outros casos, referenciei o aparecimento a partir de meados da década de 1960, de um movimento associativo pujante e de um ativismo sindical, que levou a autonomia e independência, em 1965, ao sindicato dos metalúrgicos e, em 1966, ao sindicato dos escritórios de Braga, e ainda, nesse ano, à fundação do CAF, por um grupo de jovens, que desenvolveu um conjunto de atividades artísticas e culturais, nomeadamente exposições, entre as quais a da ceramista Rosa Ramalho e a realização de feiras do livro.
Iidentifiquei ainda a criação em 1968 do Cine Clube do Famalicense Atlético Clube (FAC), que projetou em quatro anos no Cinetetro Augusto Correia perto de uma centena de filmes, das melhores cinematografias europeias e americanas, e também o surgimento, em 1969, da Livraria Fonte Nova, fundada por Virgínia Granja e Orlando de Carvalho, bem como o Café Nara, que rapidamente se transformaram em centros de encontro e convívio, frequentados pelos círculos oposicionistas. Pelo meio, realizaram-se as eleições de 1969, que redundaram em frustração e num refluxo político da oposição.
Mas o movimento cultural cresceu e estendeu-se a Riba de Ave e a Joane, tendo a cooperativa Cooprave como um dos exemplos mais expressivos, do centro operário ribadavense, enquanto o Teatro Construção lançava as raízes da sua matriz artística, que o tornariam numa das maiores e prestigiadas associações do concelho, após a revolução de 25 de abril de 1974.
Só em 1971 aparece a Livraria Júlio Brandão, no mesmo ano em que um grupo de operários tenta retirar das mãos do corporativismo o Sindicato Têxtil de Delães, e o FAC sai da órbita do regime e lança um plano de ações culturais, sem deixar de prosseguir os seus fins desportivos.
O objetivo da exposição foi fornecer uma visão de conjunto, integrada, destas múltiplas e diversificadas atividades socioculturais e cívico-políticas, enquadrando-as na dinâmica político-cultural de amplitude nacional, que disputava ao regime o domínio cultural, forjando uma alternativa ideológica à mundividência salazarista, criando um novo pensamento que se projetava nas atividades socioculturais que iam ocorrendo um pouco por todo o lado. E às quais a juventude aderia, afastando-se da influência do regime. Serve de exemplo o abandono da sede da Mocidade Portuguesa, reduzida a uma sala vazia com uma mesa de ténis!
Neste contexto e circunstância, em 1999, fazia todo o sentido convidar o deputado europeu José Pacheco Pereira para fazer uma conferência, e visitar a exposição “A Resistência Cultural ao Fascismo na Década de 60 e 70 em Vila Nova de Famalicão” patente no museu Bernardino Machado.
Pedi-lhe para falar dos “25 anos do 25 de Abril” que estávamos a comemorar. Pacheco Pereira cumpriu, sem deixar escapar que um dia falaria das suas memórias político-culturais na zona do Vale do Ave, antes e depois do 25 de Abril.
As aqui relatadas, e que já em parte constavam da exposição, são uma amostra, porém significativa, do seu longo percurso cívico-político, cujas raízes mergulham em Vila Nova de Famalicão.
A livraria Júlio Brandão cumpriu a sua missão. Colocou nas mãos de milhares de portugueses textos políticos, que o medo da censura e da repressão levava as editoras a excluí-los dos catálogos. A asfixia financeira ditou o seu encerramento prematuro. Porém não a sua morte.
O advogado Macedo Varela planeou transferi-la para o Porto, chegando a alugar um espaço, que sinalizou com o pagamento da primeira renda. Estava a constituir uma sociedade com outros sócios… e veio o 25 de Abril!
Como diz Flamarion Maés, “Portugal sai de uma ditadura para uma democracia plena, no campo editorial ao menos”.
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