Claro que é discutível o que se escreve e diz sobre tudo, quando se discorre sobre a vida, a morte e derivados, como o lugar de nascer, morrer e ser deslocado/removido, quer queiras quer não, para lugar diferente daquele onde nascemos ou morremos.
Refiro-me, claro, à recente trasladação do “génio da graça e da beleza”, na sequência de outra anterior desde Lisboa para Baião, Eça de Queirós, que morreu em Paris e nasceu aqui ao lado de José Régio, na Póvoa de Varzim, em 1845.
Eça contactou episodicamente em Vila Nova de Famalicão com Camilo – que nasceu em Lisboa, em 1825, há precisamente 200 anos –, mas preferia a Casa de Pindela e seu amigo Bernardo, esse mesmo secretário do rei Dom Carlos, que está de há anos a esta parte em frente à Biblioteca de Camilo Castelo Branco, na cidade, mesmo encostadinho a Bernardino Machado, àquele que quis ser famalicense desde que abriu os olhos no Brasil e repousar na sua terra, Vila Nova de Famalicão, depois de ter sido por duas vezes Presidente da República de Portugal.
Não parece ter deixado vontades de ser aqui ou ali ou de fazer testamento até e, apesar do que deixou em “A Cidade e as Serras”, dos Campos Elísios em Paris até Tormes, pasme-se!…
E desde aí ter os desabafos das terras por onde se deixou ficar, não longe das terras de Aregos e rio Douro, a verdade é que nunca a Póvoa de Varzim litigou sobre a possibilidade de retornar à terra que o viu nascer e vejo agora mesmo que até Baião ficou deslumbrada com a ida da sua referência cultural maior para o Panteão Nacional, leia-se, necrotério, mausoléu, casa dos mortos, depósito mortuário… para não dizer pior, pelo respeito que me inspiram também todos os seus ocupantes, bem pobres por certo para precisarem de sepultura oferecida e mantida pelo orçamento do Estado. Vaidades humanas, claro… e só! E, se calhar, assim é por todas as grandes cidades do mundo.
É semelhante o destino destas duas pequenas cidades hoje: uma não o requisita nem reclama porque já tem nomes dispersos pela cidade e outra porque nunca se terá apercebido do génio e grandeza daquele que, viajado pelo mundo, concordou em sossegar por ali, naquela bela encosta de Santa Cruz do Douro… aqui que a importância do mar só existe porque há muita gente que gosta de se aproximar dele, apesar de o luminoso Douro servir de cordão dourado para conter e iluminar aquela terra.
Todos sabemos como Camilo resolveu o problema, por amores e muitos desvarios, e depois daquele imortal soneto sobre os “110 amigos ou talvez mais…“, que ele escreveu de uma penada e não tenho dúvida de que eram às centenas, apesar de, e bem perto, houvesse quem não se importava de lhe chegar a roupa ao pelo, que lá brigão era ele, sempre picado também pelo génio e pelas bexigas, como se lhe referia o grande camilianista e escritor duriense, João de Araújo Correia, que tive a honra de acompanhar pelos anos da década de 1980 a Ceide, tal como, mais tarde, o grande e genial Alberto Moravia, acompanhado de uma bela “ragazza” inspiradora e, apesar do frio e neve naquele dia, de coxa ao léu e grande casaco por cima!…
Não gostei da solução, mas poderá ter sido decisiva a reaparição da família que os parlamentares peralvilhos do que gostam é de alvitrar mesmo que não passem de eternos aprendizes ou alunos repetentes da “arte de bem cavalgar toda a sela”, brandindo dicções inusitadas para as galerias e a posteridade e/ou sonhar até em ir diretamente de casaca e medalhas do Parlamento para o Panteão, que, certamente, honraria maior ou ideal de vida não haverá, para quem passou a vida sentado, de manjedoura perto, ouvindo, limpando unhas e falando sempre para não enferrujar as fauces nem adormecer!…
Se eu fosse poveiro, e foi aqui que vi o grande mar pela primeira vez e não pela televisão, não deixaria de sair à liça nesta contenda, mas não sou e, em Paris, que o lembra, enquanto houver afeição às letras que o recomendem, mas não compreendo nem aceito também a passividade, o conformismo e o fatalismo de Baião, logo Baião, bela terra do meu amigo e lutador José Luís Carneiro, e homem de brios, recordando Camilo e Eça, ele a quem o grande Harold Bloom, meu consultor e homem de referência nas letras, considerava um dos 26 velhos escritores da civilização e entre a literatura portuguesa e inglesa, e que não havia melhor nesta vida ou outra que contemplar “o rio que corre pela minha aldeia…” – assim o proclamava o grande Alberto Caeiro, em “O Guardador de Rebanhos”, no poema XX “naquela noite de 8 de março de 1914,” e que diz assim…
“O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal,
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontraram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”
Por tudo isto, nada mais a dizer que palavras leva-as o vento e, para mim, está quase tudo dito.
Eça chega ao Panteão, que não aos Jerónimos, cofia o bigode, depõe a luneta e desabafa simplesmente após os primeiros momentos: “Isto é horrível!”… depois de, pouco antes, ter proclamado Jacinto – “Acredita, não há senão a cidade, Zé Fernandes, não há senão a cidade!…”
Bem. Em que ficamos, Eça?!…Em Paris e Lisboa, e Póvoa de Varzim ou Baião ou, afinal, no Panteão ou Jerónimos?!… Não percebo nada disto, mas alvitro: o Camilo que nasceu em Lisboa, 20 anos antes de ti, está na Lapa, no Porto, em jazigo de seu amigo e “irmão” Freitas Fortuna e tu, que nunca te arrumaste literariamente bem na sua escola, rumaste da Póvoa, arredores do Porto, onde ele gostava de nomadizar para renovar os ares da pleura e aliviar a tola dos concertos monocórdicos de flauta do filho Jorge, meio empoleirado na acácia, para Lisboa.
Não sabemos se quererias ou não mas, pelo sim e pelo não, penso que não te desagradaria a capital do velho império, tu que foste seu embaixador em diversas partes do mundo, homem atento e cosmopolita, sempre com um pé no Chiado, com o grande Antero nas Conferências do Casino e nos Vencidos da Vida e em Pindela/Famalicão, para dar à treta com os teus amigos e o anfitrião Bernardo, conde de Arnoso, esse mesmo que mandava servir aquela perdiz de escabeche e fatias de melão de casca de carvalho e bem acompanhado por aquele capitoso verdasco, alvarinho ou não, único no mundo e que tanto apreciavas debaixo daquelas latadas minhotas, se bem que eu preferia revisitar-te no mosteiro dos Jerónimos!… Malhas que o império tece.
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