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Domingo, 9 Março 2025
Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

O golpe de misericórdia

Haja misericórdia! Pior do que perdermos equipamentos estruturantes do nosso desenvolvimento local é confiarmos em autarcas que têm o rabo preso: acabam a conciliar prioridades com o governo em vez de lhe darem luta. Para memória futura, isto aqui então é assim: o hospital de Santo Tirso era nosso, mas ficará doravante entregue a piedosas mãos. É começar a rezar.

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Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

Famalicão

Este ano a partida de Carnaval chega um poucochinho mais tarde: haverá de arrancar Abril – podia ser mentira mas não é – e será nessa altura que, previsivelmente, a gestão do hospital de Santo Tirso passará para as mãos da Misericórdia local.

Previsivelmente porquê? Porque ainda não é certo que seja nessa altura, dependente que está de um estudo que terá de comprovar poupanças de pelo menos 25% nos custos de funcionamento por comparação com a solução de gestão actual, que é pública. Acho que sim, vai comprovar com toda a certeza. Costuma ser assim, pelo menos.

De toda a forma, certo, certo é que o governo da República firmou acordo com a União das Misericórdias Portuguesas para a ‘devolução’ da gestão de vários hospitais – entre os quais o de Santo Tirso – às respectivas Misericórdias locais.

E porquê às Misericórdias? Quer dizer, se a ideia é favorecer o preconceito ideológico dos benefícios da gestão privada, poder-se-ia por maioria de razão entregá-la a uma miríade de soluções empresariais que já actualmente existem no mercado. Com a vantagem que têm de estarem melhor apetrechadas em, lá está!, capacidades de gestão… Isto é, penso eu de que.

Mas repare-se que se fala em “devolução” às Misericórdias, e aqui entramos já no domínio do revisionismo histórico. Sim, é facto que o hospital Conde de S. Bento (em Santo Tirso), como aliás o de S. João de Deus (em Famalicão), pertenciam às misericórdias locais. Isto no tempo da outra senhora.

Depois deu-se uma coisa chamada revolução e outra ainda chamada democracia, e com essas duas coisas digamos que a generalidade dos cidadãos foi por assim dizer empoderada a pontos tais que decidiram tomar em mãos o destino de certas outras coisas que achavam por demais importantes. Entre elas, a saúde.

Em Famalicão é incontornável perceber-se que a ULS Médio Ave se degrada para pior com a perda do seu braço tirsense.

Mas a ideia de que se deve devolver alguma coisa assenta naturalmente no pressuposto de que essa coisa pertencia por direito a outrem. Sobre isto, oferecem-se-me duas ordens de ideias.

Em primeiro lugar, o modelo assistencial e caritativo de que o Estado Novo fez regra, tendo lugar como tem hoje numa sociedade livre e aberta, só por si não responde satisfatoriamente ao grosso das necessidades de todo um país. Como, de resto, o revelam à saciedade as estatísticas de saúde pública miserabilistas que Portugal apresentava à época. E posto isto: se alguém foi alienado foi, antes de tudo o mais, o povo português, que se viu cerceado por décadas do direito inalienável à saúde e ao bem-estar mais elementar.

O segundo ponto é o corolário do primeiro: tão fraca era a qualidade do serviço de saúde à época que não restou ao Estado outra alternativa que não fosse um investimento massivo e continuado no que veio a ser, mais tarde, a arquitetura do Serviço Nacional de Saúde.

E portanto: o hospital cuja gestão agora se “devolve” não tem nada a ver com o que foi nacionalizado nos idos de anos setenta do século passado. Nem por sombras. É bom que não restem dúvidas sobre isto.

A decisão é do governo e foi tomada sem o envolvimento dos representantes das populações afectadas. O presidente da câmara de Santo Tirso vem reclamando a altos brados contra esta vilania. O presidente da câmara de Famalicão ficou calado.

Mais ainda com a solução de integração dos dois hospitais de Santo Tirso e Famalicão numa única entidade centralizada que foi seguida nas últimas duas décadas. De caminho deitam-se para o lixo vinte anos de trabalhos e investimentos feitos na harmonização de sistemas, racionalização de serviços e distribuição de pessoal. E bem a propósito, o que dizem os trabalhadores desta prendinha no sapato ao fim de tantos anos de redobrados esforços? Ao que se sabe, estão bastante irritados. Pudera.

É que não se vislumbram méritos especiais no “sector social” que justifiquem o favorecimento que lhe fazem. De minha parte, permito-me expressar o óbvio: o “sector social”, sempre tão incensado pela praxis política, é tão permeável aos defeitos da natureza humana como qualquer outra organização, pública ou privada. O compadrio, o predomínio da cunha, a prepotência, a opacidade? Façam-me o favor. Tocam-lhes na mesma medida, senão mais. Nem admira que a generalidade dos trabalhadores olhe para esta solução com desconfiança e rancor. Sim, não poupemos nas palavras: com rancor.

Quanto ao mais, acho particularmente ilustrativa a inépcia e a inércia generalizada dos partidos políticos de Famalicão diante desta polémica. Excepção feita para o PCP-F, que foi o único a trazer o assunto à discussão na mais recente assembleia municipal.

Para começar, a decisão é do governo e, que se saiba, foi tomada sem o envolvimento dos representantes das populações afectadas. O presidente da câmara de Santo Tirso, que é do PS, vem reclamando a altos brados contra esta vilania. O presidente da câmara de Famalicão, que é do PSD, ficou calado, e até hoje. A política tem destas coisas.

Convirá ressaltar que o presidente da câmara de Santo Tirso chegou ao ponto de se apresentar pessoalmente no ministério da saúde, sem marcação prévia, visto que a ministra não lhe dava resposta ao pedido de audiência. Aproveitou para entregar em mão uma carta aberta onde questiona múltiplos pontos que oferecem dúvida, e que vão desde saber-se quais são os serviços clínicos que se manterão ou não na cidade até à proteção das regalias e carreiras dos trabalhadores. Mas há um ponto entre todos que salta à vista, e que é este: como é que se defende e potencia a qualidade dos serviços quando se perspectiva uma quebra abrupta de 25% no orçamento que lhe está afecto. Pois…

Sobre isto. Conheço mal a fibra da intervenção pública do presidente da câmara de Santo Tirso. Já a do presidente da câmara de Famalicão conheço-a bem, sim, e oh se conheço: pauta-se por um despautério pegado de autoelogios melosos e de um sentido de autocomiseração impenitente. O chamado farsante em modo de campanha permanente.

Mas agora vejamos. Então o homem inaugura hipermercados a contrarrelógio com uma tal sofreguidão vindicativa pelo sucesso interestelar do concelho e depois não se incomoda com a mutilação infligida ao principal equipamento social do dito? Pois não apenas parece que não, como parece mesmo, mesmo que não.

Sabemo-lo bem porquê: porque o governo que decidiu isto é do partido dele.

E se é verdade que a câmara de Santo Tirso aprovou uma moção em defesa da gestão pública do hospital local, não é menos verdade que o PSD local votou contra! Ora, em Santo Tirso podem até achar que o hospital local não vai para mais lado nenhum e tudo se resume a uma legítima opção política em torno de soluções de gestão; mas em Famalicão é incontornável perceber-se que a ULS Médio Ave se degrada para pior com a perda do seu braço tirsense.

Caríssimo leitor: se planeia ter filhos nos próximos anos… talvez seja melhor ir começando a pensar onde prefere que nasçam, porque em Famalicão não vai ser.

Ainda assim preferem calar. É o que temos com Mário Passos: posto perante o governo e os famalicenses, escolhe o governo. Só se surpreende quem quer.

Outro fenómeno digno de atenção é a reacção do putativo líder da oposição local. Eduardo Oliveira é enfermeiro de profissão e trabalha precisamente no hospital de Famalicão. Sobre políticas de saúde não teve muito para nos dizer até aqui, isto para além da ideia peregrina de constituir um movimento cívico pela construção de um novo hospital em Famalicão. E quem é que o impede? Nada nem ninguém. Mas avançou com isso? Exacto.

Agora até fez promessa eleitoral, o que é particularmente revelador da ponderação das suas propostas, atendendo a que construir um hospital não cai dentro da esfera de competências municipais.

Pois bem, enquanto se entretém com movimentos cívicos que não saem do papel e novos hospitais que não dependem do poder autárquico, sobre a degradação do nível de serviços que se perspectiva para a Unidade Local de Saúde do Médio Ave, o que nos disse Eduardo Oliveira? Nada de nada.

É consabido que Eduardo Oliveira tem um verdadeiro toque de mudos: capitaliza silêncios atrás de silêncios e é assim que nos quer convencer a votar nele. Talvez seja mesmo melhor assim: receio o que dali viria caso lhe desse para o contrário.

Mas saberá o PS-F que, entretanto, foi criado, esse sim, um “Movimento de Utentes do Hospital de Santo Tirso”? Parece que, quem quer que sejam os ilustres cidadãos, não ficaram à espera da morte da bezerra para fazer algo por eles abaixo.

Proponho uma subscrição do manifesto, Eduardo. Nele se diz esta coisa básica:  “Este é o momento de lutar. Este é o momento de defender o que é nosso” e de “mostrar, juntos, que não aceitamos que o nosso hospital seja entregue a interesses privados, mesmo sob o disfarce do ‘setor social'”.

Lutar, Eduardo: é o contrário de ficar sentado à espera de que o poder nos caia no colo.

Posto isto, no essencial é bom que todos tenhamos presente o caminho que se desbrava diante das nossas barbas: primeiro, o hospital de Famalicão, na sua versão diminuída, irá definhando até alcançar a menoridade regional, e acabará por ficar na sombra das zonas de influência de Braga, Guimarães e Porto.

A primeira valência a cair será a maternidade. Já hoje nascem menos de 1.500 crianças por ano em Famalicão, e esse é o número tido como referência para garantir a eficiência dos serviços. Não é que as crianças de Santo Tirso vão passar a nascer em Santo Tirso; simplesmente não nascerão em Famalicão. Pois vai uma aposta em como, daqui para a frente, a novel administração do hospital de Santo Tirso passará a encaminhar as parturientes do concelho para as unidades de saúde do Grande Porto?

Com o número de parturientes a descer drasticamente, ficando bem abaixo do limiar definido das 1.500 crianças por ano, o destino da maternidade em Famalicão estará selado. Talvez o nosso presidente da câmara, quem quer que seja por essa altura, fale na ocasião.

Caríssimo leitor: se planeia ter filhos nos próximos anos… talvez seja melhor ir começando a pensar onde prefere que nasçam, porque em Famalicão não vai ser.

Depois seguir-se-á o serviço de urgências. Já hoje funciona de maneira intermitente, com valências escassas e equipamentos críticos em falta. Por certo arrasta os pés por motivos maiores de que enferma o conjunto do SNS. Por isso se torna despiciendo começar a discussão pelo telhado: construir um hospital novo! Com que profissionais, com que valências, com que massa crítica de pacientes e cobertura territorial?

O que é incontornável é que a degradação de escala que se perspectiva para o hospital de Famalicão trará consigo uma entropia crescente e viciosa. Em tudo isto poderá haver muito de inevitável, quero crer, explicando-se em grande medida pelas regras da demografia e da economia. Mas da política também: porque podíamos ao menos dar luta. Até ver, não está a acontecer.

 

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Paulo Barros
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Economista famalicense.
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