“Que tremor incomum
está assaltando meu espírito?
De onde vêm esses giros
repletos de fogo e medo?”
– Don Giovanni
(traduzido de um excerto da ópera “Don Giovanni”,
de Wolfgang Amadeus Mozart)
Desde cedo que, na generalidade, as nossas famílias nos ensinam aquilo que entendem ser a nossa missão (ou as nossas missões) na vida terrena: crescer, estudar, trabalhar, casar, constituir família, etc. Perante essas “missões” que nos são incutidas, tendemos a criar todo um percurso que nos leve a concretizar as mesmas e que, pelo meio, possamos ser felizes com isso e orgulhar as nossas famílias.
Também não há muito espaço para duvidar do facto de que os rapazes sentem esta transmissão de uma forma diferente daquela que as raparigas sentem. Os rapazes são incentivados desde cedo pela família e amigos a serem engatatões e a andarem atrás das “garinas”. Aqueles que são bons engatatões e conseguem arranjar namoradas com facilidade são normalmente apelidados de “Don Juans”. Não é incomum ouvir-se tias e mães a dizerem com um certo tom orgulhoso que seus filhos são “Don Juans”.
Contudo, esta expressão, como qualquer expressão na Língua Portuguesa, tem uma origem (neste caso, uma origem literária). O tema da crónica deste mês da rubrica “Literatura Circular” girará em torno da origem e evolução literária e artística desta questão deveras “social”: ser um Don Juan.
Primeiro que tudo, quem é realmente Don Juan? Don Juan (também conhecido pelo nome completo de Don Juan Tenorio) é uma das mais míticas personagens da Literatura Espanhola e da Literatura Universal. Tem sua origem em “O Burlador de Sevilha e o Convidado de Pedra”, uma peça de teatro que surge em Espanha por volta de 1616/1617 (as obras barrocas espanholas tendem a não ter uma data certificada) e cuja autoria é atribuída a Tirso de Molina, um monge madrileno nascido em 1579 que dedicou a sua vida à poesia e à dramaturgia na era barroca.
A obra conta-nos a história de Don Juan Tenorio, um nobre espanhol que vive desterrado em Nápoles e que nos é apresentado como um jovem esbelto que seduz mulheres (nomeadamente jovens muito ricas ou muito pobres para se deitarem com ele) e as utiliza como meios para atingir seus fins. No primeiro ato, vemos o jovem a seduzir uma duquesa, escapando posteriormente através de burlas após ter sido descoberto. Acaba naufragando na sua fuga, mas obtém ajuda de uma pescadora através de promessas de ascensão social. Ao chegar a Sevilha, recebe ordens do Rei para se casar com a duquesa que burlara.
No segundo ato, vemos um novo aliciamento por parte de Tenorio, desta vez feita a Dona Ana de Ulloa, sendo, contudo, descoberto pelo Comendador de Calatrava. Esta descoberta leva Don Juan a assassinar o mesmo e a fugir, seduzindo pelo meio uma noiva que encontra num casamento numa aldeia. Aqui, podemos ver o lado mais feroz de Juan Tenorio, banhado por desejo psicopático de evitar as consequências dos seus atos, desejo esse originado por uma ausência inexplicável de remorso na mente do protagonista (apesar do mesmo ter consciência da amoralidade dos seus atos).
No último ato, assistimos à entrada de Don Juan numa igreja em Sevilha e a aliciar a estátua do comendador, convidando-a a jantar. A estátua, em jeito de “duplo convite”, aceita como forma de se vingar do mesmo, matando o nobre durante o jantar.
Através das ações do protagonista, Tirso nos apresenta uma perspetiva moralista, perspetiva essa muito comum nas obras do período barroco. Porém, esta imagem do burlão (ou, como os ingleses dizem, o trickster) não é invenção do autor da peça. A mesma tem antecedentes literários em obras como “As mentiras de Celauro” (obra de 1614 de Lope de Vega que fala de toda uma cabala que Celauro monta para arruinar um casamento) e “A Montanha da Verdade” (obra de 1613 de Luís Vélez que fala das seduções que burlador comete, sendo o mesmo castigado no fim pelos seus atos).
Ainda assim, a personagem trickster não é uma invenção puramente espanhola. Vemos o exemplo do rei Diomedes de Trácia, personagem da Mitologia Grega que convidava pessoas para seus manjares, matando-os no fim e dando os restos mortais às hienas para comerem (o tal “convite duplo”/convite com segundas intenções que falei acima). Na Irlanda pré-cristã (país com a tradição literária mais velha da Europa), temos um caso mitológico de trickster. Trata-se de Bricriu, poeta de Ulster (atual Irlanda do Norte) que é conhecido como um mentiroso compulsivo e como uma pessoa problemática (ou, como dizem os brasileiros, “encrenqueiro”). No clássico “A Festa de Bricriu”, podemos ver o mesmo fazendo promessa da “Porção do Campeão” a três guerreiros diferentes como prémio pela valentia. Esta promessa mentirosa faz com que os três reclamem o prémio e lutem por ele.
Como disse na parte inicial da história, Don Juan é das personagens mais míticas (senão a mais mítica). Como se tornou tão mítica? Através das diferentes adaptações e inspirações que surgiram da obra de Tirso de Molina. Autores como Molière, Byron e Zorrilla fizeram os seus próprios Don Juans. Molière faz um sedutor quase igual ao original, só que este sedutor é descrente e só engana uma pessoa. Zorrilla cria um Don Juan diferente. O nobre criado pelo mesmo acaba por se apaixonar por uma das suas aliciadas. Este amor leva-o a arrepender-se dos seus pecados e a tornar-se crente antes de morrer.
À boleia do sentimentalismo criado por Zorrilla, temos a versão de Lord Byron, poeta da segunda escola do Romantismo Inglês. O autor de “Manfredo” mostra-nos um Don Juan mais atormentado. Este Don Juan sofre de violência sexual por parte das mulheres (ou seja, não são as mulheres as vítimas da história). No fim da história, não existe um castigo moral.
Ainda na Literatura, temos outros exemplos “donjuanescos”. Temos o caso de Dorian Gray, protagonista de “O Retrato de Dorian Gray”, clássico de Oscar Wilde. Aqui, vemos Dorian Gray como um personagem obcecado pelos padrões de beleza que acaba por namorar com uma jovem atriz chamada Sybil. Pouco tempo depois, livra-se da jovem, fazendo com que a mesma ponha termo à sua vida por desgosto amoroso.
Apesar desta carga literária (que eu acredito que possa estar a maçar o leitor), Don Juan é um mito que transcende a Literatura. Uma das transcendências mais notáveis da figura “donjuanesca” é feita por Wolfgang Amadeus Mozart, um dos maiores gênios compositores da história da música. O mesmo cria uma grandiosa ópera chamada “Don Giovanni” (de cuja ópera o caro leitor poderá encontrar uma citação em epígrafe nesta crónica), onde Don Giovanni faz um percurso semelhante a Don Juan e tem um final idêntico.
No cinema, temos também várias adaptações, sendo a mais notável “Don Juan DeMarco”, dirigido por Jeremy Leven, onde se introduz a personagem de um psiquiatra nova-iorquino que se apaixona por uma das pacientes e se torna disposto a matar em nome do amor. Este filme introduz-nos ao conceito patológico de “Síndrome de Don Juan”, uma patologia psiquiatra em que o doente é um sedutor compulsivo e sente prazer em seduzir.
Posto isto (porque a crónica vai longa e não quero que se ache que eu sou um escritor pedante), introduzo caro leitor à seguinte problemática: porquê que chamamos tão orgulhosamente os rapazes “amorosamente mais abonados” de “Don Juans”? Porque tiramos nós um significado tão positivista de uma expressão com uma carga simbólica muito negativa? Sei que estas questões mexem muito com as pessoas mais conservadoras (ainda mais aquelas que mais anseiam por filhos e netos), mas é algo que me faz confusão e que não podia deixar de abordar nesta crónica (mesmo sabendo que temáticas inclinadas para o feminismo e para a masculinidade façam confusão a muitas pessoas).
Há necessidade de estarmos a carregar os jovens rapazes com este estereótipo com origens tão negativas para conseguirmos assegurar a renovação de gerações? Se a necessidade é mesmo a renovação, então deve-se encontrar outras formas de incentivar a renovação para evitar carregar os jovens com esta figura donjuanesca. Talvez seja hora de se pensar nisso.
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