“Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
– depois, abri o mar com as mãos
para o meu sonho naufragar.”
– Cecília Meireles, in Canção, do livro Viagem (1937)
Os versos acima citados ilustram a sensação que é possível ter ao ler a obra sobre a qual estou prestes a dissertar: a sensação de ver algo pelo qual lutamos a desmoronar. É o que acontece com ao perceber a personagem-narradora de Carta de uma Desconhecida. O tema desta reflexão estará centrada nessa mesma personagem bastante importante para os tempos modernos, sobretudo quando o assunto é Feminismo e a Emancipação do Sexo Feminino.
Carta de uma Desconhecida é uma obra publicada em 1922 por Stefan Zweig, um conceituado escritor austríaco nascido em Viena em 1881 e que, devido à perseguição nazi aos judeus, passa os seus últimos tempos de vida no Brasil, sempre desesperado no que toca à Segunda Guerra que decorria na Europa. Zweig também é autor de obras como Piedade Perigosa (1938) e Romance de Xadrez (1941).
A obra que esta reflexão aborda é constituída na sua completude por uma carta que uma jovem mãe (cujo nome não sabemos) dirige a um poeta (cujo nome também não sabemos).
Nesta carta – cuja extensão, na versão traduzida, é de 60 páginas em média -, a jovem conta ao destinatário toda a sua história desde o dia em que o viu na vizinhança de sua casa.
É de salientar que, no momento, em que a jovem começa a escrever a carta, a mesma está debilitada no leito da morte, sendo que todo o olhar narrativo da mulher é influenciada pelo desespero da doença.
Nesta carta, a narradora relata com todo o detalhe toda a paixão que sempre sentiu pelo poeta e como sonhava em ser o amor da vida dele. Relata toda a paixão ardente com que o admirava todos os dias como se ele fosse um Deus olímpico e raiva que sentia quando via mulheres a entrarem na casa dele.
Tal paixão ardente leva a jovem a ser uma dessas mulheres casuais que entravam na casa do poeta, tendo engravidado dele nessa noite. A partir daí, a carta passar a descrever toda a vida de sacrifício que ela faz para criar o filho do poeta, tendo de se prostituir para que a criança tivesse a melhor educação e o melhor lar possível. A mesma faz toda esta vida de sacrifícios para não perturbar a vida do poeta e para não ser olhada pela sociedade como uma aproveitadora.
No fim da carta, a mesma se despede, falando-lhe da sua situação terminal e sobre o quanto o amou e se sacrificou por ele, avisando-o que já não estará viva quando ele receber a carta. Já o poeta, ao ler a carta, entra num estado de espírito introspetivo, ficando a reviver todas as memórias possíveis para localizar a mulher no tempo.
Perante tudo isto, em que questões devemos pensar? A primeira prende-se com a posição da mulher naquele período: a mulher que está sob a alçada do Patriarcado e sob os valores puritanos que este mesmo sistema lhe impõe. Uma mãe solteira é facilmente vista como uma desavergonhada; se lançar a paternidade para os braços de um homem conceituado, pode ser vista como uma interesseira (ou, como dizem os americanos, uma gold digger). Do outro lado, vemos o retrato – ainda que feito de um dos lados apenas – do poeta enquanto figura snob, Boémia, requintada, errática. Ou seja, um estilo de poeta mais decadente.
Para além disso, temos a figura da mulher-guerreira, a mulher que, perante as dificuldades, se desdobra para criar um filho sozinha. Por arrasto, esta figura traz a prostituição como um ofício não tão descartável, mas sim como um ofício quase heróico onde mulheres se sacrificam para sobreviverem e darem uma vida aos seus filhos
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