Imagine viver sem identidade. Sem documentos que provem quem é, sem direito a cuidados de saúde, educação ou trabalho formal. Sem poder abrir uma conta bancária, assinar um contrato ou, em muitos casos, sequer dar nome aos seus próprios filhos. Esta é a realidade de milhares de apátridas em todo o mundo e, em Portugal, de pelo menos 149 pessoas, segundo o Censo de 2021. Para estas pessoas, o conceito de “direitos básicos” não passa de uma promessa vazia.
O Parlamento português, ao reconhecer o Estatuto do Apátrida em 2023, deu um passo importante para corrigir esta exclusão histórica. Contudo, sem a regulamentação necessária, o estatuto permanece como uma estrutura oca, incapaz de cumprir a sua função mais básica: devolver dignidade a quem vive no limbo jurídico. No dia 30 de Janeiro, esta questão regressa à agenda parlamentar, com dois projectos destinados a estabelecer os procedimentos de reconhecimento, concessão de residência e acesso à nacionalidade para apátridas.
A apatridia é mais do que uma condição legal. É uma das formas mais extremas de exclusão social, perpetuada não por omissão, mas por sistemas que falham em incluir. Os apátridas são pessoas que nenhum país reconhece como cidadãos, segundo a definição do ACNUR, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados. Globalmente, o ACNUR estima que haja 4,4 milhões de apátridas, embora o número real seja, provavelmente, muito maior. Sem nacionalidade, estas pessoas não têm acesso aos direitos básicos que a maioria de nós considera garantidos. Elas vivem, literalmente, à margem da humanidade.
Portugal, ao assinar convenções como a de 1954 sobre o Estatuto dos Apátridas e a de 1961 para a Redução da Apatridia, comprometeu-se a proteger estas pessoas. Mas compromissos internacionais só têm valor quando são internalizados e aplicados com eficácia. A regulamentação proposta é uma extensão desse compromisso, oferecendo um caminho claro para que os apátridas obtenham uma autorização de residência provisória e, após três anos de residência, possam solicitar a nacionalidade portuguesa. É uma medida alinhada com os princípios constitucionais e as melhores práticas internacionais.
Mas este não é apenas um teste de eficiência legislativa. É um teste moral. Enquanto o Parlamento debate e decide, pessoas reais continuam presas a uma invisibilidade forçada, sem acesso a direitos que deveriam ser universais. O que está em jogo aqui não são apenas números num censo ou uma formalidade jurídica; é a essência de quem somos como sociedade. Somos um país que cumpre os seus compromissos? Que protege os vulneráveis? Que honra os valores de igualdade e dignidade humana?
O próximo dia 30 de Janeiro será um momento determinante para a discussão da regulamentação do Estatuto do Apátrida no Parlamento. Contudo, no contexto legislativo, as pautas podem ser ajustadas ou adiadas, dependendo das deliberações parlamentares ou de solicitações dos proponentes. Por isso, é essencial continuar a acompanhar esta questão e sublinhar a sua urgência.
A regulamentação do estatuto não pode ser vista como uma mera formalidade, mas como um compromisso ético e jurídico de dar voz e garantir direitos a quem vive à margem da sociedade. Que este seja o momento de reafirmar os valores de inclusão e direitos humanos que devem guiar-nos enquanto nação, transformando promessas em acções concretas.
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