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Vila Nova de Famalicão
Quinta-feira, 26 Dezembro 2024
Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes foi Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão entre 1983 e 2002, eleito pelo Partido Socialista.

A terceira maior tragédia na Casa de Camilo

Não me conformo com o abate da Acácia do Jorge, nem com a falta de sensibilidade e senso por parte dos cangalheiros e magarefes.

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Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes
Agostinho Fernandes foi Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão entre 1983 e 2002, eleito pelo Partido Socialista.

Famalicão

Recuso-me a acreditar no que chegou até mim pelas mais diversas formas como se de alarme se tratasse, informando que a mais que famosa “Acácia do Jorge” tenha sido decepada e cortada por estar velha e morta, mesmo à entrada da Casa do Mestre em S. Miguel de Ceide. E claro que lá fui de imediato, mas todas as provas estavam bem aplanadas e disfarçadas, com desaparecimento total da árvore das proximidades, talvez a mais famosa de Portugal. Aqui tem de haver mistérios, que esta casa sempre pareceu assombrada, como sublinhou Amândio César, que tive a honra de conhecer por mão de Benjamim Salgado.

Agostinho Fernandes, antigo presidente da Câmara de Famalicão e colunista do NOTÍCIAS DE FAMALICÃO, fotografado junto à acácia-substituta, em 20 de novembro de 2024, dia em que a árvore foi plantada pelos serviços municipais.

Depois do incêndio da casa em 1915 e fixado na cabeça de todos o que Camilo deixou como epitáfio, ela que tantas vezes, como todos nós, teve as suas crises e maleitas, enflorando sempre, como pressagiara o escritor, não deixa de ser paradoxal, no mínimo, e justamente no ano do bicentenário do grande escritor Camilo Castelo Branco (1825-2025) e depois de o seu último diretor, o único conhecido que foi em vida afastado e que não por doença ou reforma, esta é para mim a terceira maior tragédia naquela casa, depois do suicídio, em 1890, e do calamitoso incêndio.

Não sei quem foi o verdugo, nem qual a marca da motosserra, que até poderá ser negociada pela Câmara Municipal, para uma certeira e golpista publicidade a seu favor, mas na década de 1980, com a acácia meia alquebrada já e aparentemente frágil e quase estilhaçada, desloquei-me a Ceide com o saudoso eng. Queiroga e um eng. silvicultor e técnico agrícola de Cabeceiras de Basto para abordarmos o problema e fazer o diagnóstico sanitário. Encontrou-se forma de atacar o mal e as feridas e, por mais de 40 anos, ela continuou a vicejar e florir até hoje, como vaticinara Camilo.

Nos fins de verão e outono, muitas árvores como que adormecem, depois de darem os seus preciosos frutos, sacudindo as folhas, e hibernam, aparentemente, até aos clarões aquecidos da primavera, surpreendendo-nos, como dizia o mestre, entre as auras de abril/maio, com toda a sua borbulhagem, vivacidade e esplendor e, portanto, ou ela já definhava há tempos e era urgente agir ou, então, esperar pelo INEM… ou Saúde 24… e foi assim, possivelmente, que tudo aconteceu, entre tanta desatenção!…

Este ato suicida repete a tragédia do mestre e do incêndio de sua Casa e não pode ficar impune perante os famalicenses e os Camilianistas de todo o mundo.

Camilo que classificava as árvores como suas “amigas” – “as árvores minhas amigas”, exatamente como escreveu – enquanto as acariciava, como suas grandes companheiras, e agradecia as suas sombras e frutos, ia até ao Bom Jesus para respirar e, aí por 1875/1876, escrevia: “A minha vida é sentado debaixo de uma acácia…”.

O mestre de Ceide referia-se à árvore que estava ao pé das escadas e onde o filho Jorge se empoleirava e tocava flauta. E claro que era a árvore mais famosa entre nós, ao lado da de José Saramago, junto ao nobre edifício de Januário Godinho, que recordou os avós Josefa e Jerónimo, quando ali plantou aquela cerejeira em flor que desponta também nas mesmas auras, em visita que fez a Vila Nova de Famalicão e à Casa de Camilo, com Pilar del Rio, após o galardão Nobel, acompanhado pelo amigo José Manuel Mendes, ilustre presidente de Associação Portuguesa de Escritores, e com o insigne escritor e poeta Salvador Coutinho como convidado e que fez a exaltação do Nobel no salão nobre da Câmara Municipal.

Passada que foi a certidão de óbito, a motosserra do senhorio da casa não a deixou morrer de pé, como costumam querer morrer todas as árvores, eu que já a referenciava desde os meus 15 anos em visita que fiz à Casa de Camilo, em bicicleta com alguns amigos de Joane, e gostava periodicamente de a revisitar. Velha amiga inspiradora, portanto!…

A Casa-Museu de Camilo fotografada em 12 de outubro de 2024, um mês e alguns dias antes de a acácia ter sido abatida pelos serviços municipais.

Daí toda a minha indignação. Eu próprio magico e ando e cirando, remirando qualquer árvore do meu jardim quando deambulo na sua proximidade e hesito uma e outra vez sobre a melhor forma e tempo de a podar ou tratar. Uma árvore é como um adolescente em vias de chegar em 20/30 anos à vida adulta, podendo nós espatifar essa força da Natureza em poucos minutos. Ninguém tem esse direito de o fazer, naturalmente. Há quem ande por cá umas boas dezenas de anos e nem tenha olhos abertos.

Mesmo assim, e vejo que foi mesmo, não me conformo pelo seu abate e falta de sensibilidade e senso por parte dos cangalheiros e magarefes, informando alguém que ela teria ainda rebentos no seu envelhecido caule, um verdadeiro fenómeno que Camilo registou e chegou, contra ventos e marés, até nós, por exemplo, no famoso ciclone de fevereiro de 1941, que levou muitos telhados, mas ela, esgrouviada como o dono, nem mexeu.

Este ato suicida repete a tragédia do Mestre e do incêndio de sua Casa e não pode ficar impune perante os famalicenses e os Camilianistas de todo o mundo. A explicação “urbi et orbi” aguarda-se em conferência de imprensa e tudo, podendo ser dispensado o verde de honra e o foguetório do costume.

Em Guernica, na vizinha Espanha, existe hoje ainda em redoma de vidro o que resta de uma famosa árvore, um carvalho (…). Era uma árvore igual a muitas, mas carregada de simbolismo e valores…

É em alturas como esta e outras de igual calibre entre nós que me passa logo na cabeça aquela frase abominável de Eça quando repete que “este país é uma choldra”. Não gosto e acho que o permanente escarninho elitista e quase doentio do autor de “Os Maias” não o justifica, sendo Vila Nova de Famalicão o que é, irritando-me solenemente estes gestos e atos de aberrante promiscuidade, totalmente irracionais e desadequados, apesar de muitos precedentes no centro da cidade em diversos sítios: Rua Senador Sousa Fernandes, Avenida de França e agora o bestseller da estupidez. Parabéns!…

Em Guernica, aquela cidade mártir dos arredores de Bilbau e que o genial Picasso imortalizou pelas barbaridades de Franco e Hitler, existe hoje ainda em redoma de vidro o que resta de uma famosa árvore, um carvalho, árvore adorada pelos antigos celtas e debaixo da qual os povos bascos realizavam as suas assembleias e tomavam as suas decisões. Era uma árvore igual a muitas, mas carregada de simbolismo e valores. Após a guerra civil de 1936-1939 as autoridades locais conseguiram edificar o que ainda hoje pode ser visitado e venerado e, pasme-se, tenho comigo uma folha do velho carvalho queimado, oferta do meu grande amigo basco Salvador Ondárroa, que ao oferecer-ma me disse: “Esta é a melhor lembrança que um basco te pode oferecer pela sua amizade.” Que gente é esta? Apesar de tanta sabença, títulos e ares de “gravitas” e tudo?!…

Ora bem, antes de a decapitar, arrancar, destruir, cortar aos bocadinhos, queimar?… Não teria havido esta ideia tão simples, ajustada e óbvia por parte de alguém com massa cinzenta do Município ou da universidade, nós que temos um professor doutor e cientista e investigador na Câmara Municipal e também na Casa de Camilo…

Mas o senhor diretor já tinha sido afastado e penso que tal não aconteceria de certeza absoluta, pois que sobre a sua idoneidade, forrada de competência, sensibilidade e bom senso, conhecia-o muito bem o professor Aníbal Pinto de Castro, de saudosa memória, que sendo ele um professor catedrático de Coimbra e responsável até à sua morte pela Biblioteca Joanina, ia dizendo que era dos que mais sabiam sobre Camilo depois de Alexandre Cabral e estaria preparado para ser o seu sucessor… Ele que também fraquejava nos últimos tempos como a saudosa e eterna “Acácia do Jorge”…

Se ela morreu teria agora mais de 153 anos, uma data bem bonita para a deixar de pé e até mesmo pintar de vermelho ou outra cor, rosa ou branco, como as árvores mortas, mas vivaças, no Parque da Devesa, há tantos anos idealizado e desejado para que constasse e com ou sem vidro ou campânula, para poder continuar-se a evocar sempre a telúrica “Acácia do Jorge”, coisa que agora não tem o mesmo significado e impacto em termos históricos e camilianos…

Maior desfaçatez e crueldade, a par de analfabetismo espiritual, não há. Vão todos para o inferno!…

Procedendo-se à sua natural sucessão/substituição por descendente da família que a renove por ato de eterno retorno que a substitua, continuando-se em vão a dizer e a proclamar que era a “Acácia do Jorge”, coisa que ela não é!

Apesar de agradecer penhoradamente aos zelosos e bem avisados funcionários que tiveram em tempos o talento de a prolongar no tempo, fazendo enxertia ou alporque de sua saudosa mãe Acácia/Robínia, e tê-la feito medrar até estar já bela e primaveril que o sítio é bom e resguardado de tempestades e ventos frios!

Capa do livro “Cenas da hora final”, de 1872, que Camilo dedicou à morte do seu filho Manuel Plácido. A imagem foi retirada do site da Trade Stories, plataforma com a maior comunidade de troca e venda de livros em Portugal.

Dito isto, nada, mas nada, me sossega nem tranquiliza. Demos-lhe uma Casa, mesmo que assombrada, ele que nunca a teve, mas o ex-líbris que a cobria foi pior que o incêndio e a tempestade de 1941 que quase a vergou, tendo aparecido os novos inquiridores do reino como fazendo parte daqueles “109 impávidos marotos!”, tecnocratas sem alma e “professores doutores ignorantes”, que tiveram tempo para chamar o INEM, mas resolveram o problema à sua maneira, executando-a de vez, pois, às tantas, já está queimada ou, então, cortada em pequenos amuletos tipo fósforo para ser vendida como recordação única da Casa de Camilo nos 200 anos de seu nascimento. Maior desfaçatez e crueldade, a par de analfabetismo espiritual, não há.

Vão todos para o inferno!… Visto que já se enquadrava naquele livro “Scenas da hora final”, de 1872, apesar de dedicado à morte do seu filho Manuel Plácido, como se sabe, mas agoirento o suficiente para pressentir mais desgraças, que acendem a chama da cólera, bem próxima do sagrado direito à indignação perante o que é indigno, como me ensinou o “mon ami” Mário Soares, em 1991, por ocasião das comemorações do primeiro centenário da morte de Camilo, que a Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão assinalou.

Ficareis tristemente na memória como sendo aqueles miseráveis coveiros, como Dráculas sanguinários de opa negra ou batina, que deram os passos para o desejado cadafalso final, ao som da sinfonia fantástica de Berlioz, por incompetência, péssimos senhorios, inimigos das árvores e arboricidas, broncos piores que pedras, medíocres e vazios, rostos pálidos de sioux e navajos, insensibilidade e queda de todo o estado de alguma graça. Confirmando que o rei vai nu, tal e qual o anjo transmontano de Caçarelhos que perdeu a alma em Lisboa como deputado!… Por outras razões, claro!… O Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, de “A Queda de um Anjo”.

 

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Agostinho Fernandes foi Presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão entre 1983 e 2002, eleito pelo Partido Socialista.
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