“Praticar a arte do governo na pequena esfera [do seu] alcance”
Tocqueville
Depois da vertigem em democracia do dia 10 de Março, regresso às viagens na minha terra.
No dia 10 de Março votaram 73,87% dos inscritos nos cadernos eleitorais do concelho, o equivalente a 89.036 votantes. Nas últimas eleições autárquicas votaram 63,52% dos inscritos nos cadernos eleitorais do concelho, o equivalente a 75.909 votantes. Mais 10 pontos percentuais, mais 13 mil pessoas.
Estranho fenómeno este em que a eleição dos órgãos políticos que nos são mais próximos motivam menos o nosso voto do que as legislativas. Há tanta coisa que passa pelo município, desde a qualidade do nosso espaço público (ruas, passeios, jardins…), ao financiamento das festas e fogo de artifício que brindam, ou infernizam, o nosso Verão, até ao fornecimento de serviços tão essenciais como o abastecimento de água e saneamento, bem como a determinação do seu preço, etc, etc, etc. O poder local pode, também, ajustar a taxa de IMI e IRS. Para além disso, o governo da República delegou um conjunto de competências nas Câmaras que vão da habitação, à saúde e à educação.
O que está na origem de tão estranho fenómeno?
IMPRENSA DEPENDENTE DO ORÇAMENTO DO MUNICÍPIO?
O debate está na ordem do dia, o jornalismo tem o dever de informar e servir os seus leitores e não os seus acionistas, financiadores ou a publicidade. Este é um dos requisitos fundamentais da sociedade democrática: uma imprensa livre. Atualmente os jornais do concelho são largamente financiados pela autarquia, com as exceções do Notícias de Famalicão e do Jornal de Famalicão e isso, provavelmente, nota-se.
SOCIEDADE CIVIL POUCO ENVOLVIDA NOS PROCESSOS DE DECISÃO?
Fora do espectro partidário, temos poucos movimentos e vozes divergentes que participem ativamente, ou discutam em praça pública, o futuro do concelho. As opiniões discordantes são desvalorizadas e exemplo disso é a referência de Mário Passos aos “meia-dúzia” que contestaram a construção do novo armazém do CITEVE.
O movimento associativo limita-se, praticamente, às atividades desportivas e recreativas. Sem desconsideração pelas mesmas, faltam coletivos críticos, falta provocação e a discussão dos assuntos. Riqueza no debate e partilha de opiniões tornam a decisão mais consciente.
Por outro lado, as (poucas) discussões públicas promovidas pelo Município são inconsequentes. Veja-se o último caso do Continente junto ao Palácio de Justiça. Debatido, questionado, contestado e, depois de uma suposta alteração da parcela para o uso habitacional, o município diz o dito pelo não dito, e volta a capitular aos interesses da DST e da Sonae.
Com esta lamentável atitude autocrática e faltando à verdade, o município destrói o embrionário (e valioso) movimento cívico famalicense. Depois queixamo-nos de que somos uma sociedade passiva e deixamos as portas escancaradas aos moralistas de taberna.
POUCA OU NENHUMA ABERTURA PARA OUVIR OS MUNÍCIPES?
A Assembleia Municipal é o espaço onde alguns (poucos) famalicenses vão apresentar as suas questões. A forma como as intervenções são tratadas refletem a sua subalternização. As intervenções só acontecem no final da sessão, por vezes, bem para lá da meia-noite. Os deputados estão cansados, a mesa da Assembleia Municipal sem paciência e o executivo já sem energia para responder.
Mesmo as formas mais robustas de intervenção cívica, como as petições (onde é apresentado um documento, uma proposta, suportada por mais de 700 assinaturas) é tratada com…, no mínimo, pouca consideração. Veja-se o caso da petição para a criação de um parque florestal no Monte da Santa Catarina, quase a fazer um ano e sem qualquer notícia.
E AS NOVAS GERAÇÕES?
As nossas crianças deixaram de brincar na rua. Muitos dos nossos adolescentes são deixados de carro à porta da escola e raramente se deslocam de forma autónoma. A partir do 10.º ano a escola passa a ser um campo de treino para os exames nacionais.
Amputamos a esta geração a possibilidade de viver o espaço público, de criarem os seus “projetos” livres da supervisão de um adulto ou de correrem riscos e serem desafiados à descoberta. Não empoderamos esta geração, talvez com medo de perdemos o nosso poder sobre ela.
Repensar o espaço público, a forma como nos deslocamos e fazer um esforço para criar comunidades nos nossos bairros e progressivamente alargar a nossa esfera colaborativa. Deixar de ter medo do outro e da liberdade. Passar a sentir que o que é meu, também se partilha. Talvez com isso possamos abrir um pouco mais o mundo às nossas crianças e jovens.
A GRANDE FESTA DA DEMOCRACIA
Falta pouco mais de um ano para a próxima eleição autárquica. Com tantos assuntos para debater, a minha expectativa é muito alta.
Para baixar a qualidade do debate já me chega o que se passou a 10 de Março.
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