Aqui há um par de semanas, a cidade amanheceu com algumas inscrições apócrifas numas quantas fachadas do centro. Trata-se de arte efémera, sabemos disso. E com efeito, logo no dia seguinte, e bem cedinho!, a brigada de limpeza municipal apagou as que pôde do nosso firmamento imaterial.
Não critico o aprumo: mais vale tarde do que nunca. Afinal, há não tanto tempo quanto isso, numa dessas visitas de comitiva em que o presidente se dispõe a ouvir a plebe, foi preciso um lojista apontar-lhe com o dedo aos grafitis que, de há anos, emporcalham a vista dos transeuntes. Naquele caso, emporcalhava: porque a senhora responsável pela gestão do centro da cidade – cargo altamente bem pago e não tão exigente assim, como se vê! – estava ali mesmo ao lado do presidente e começou logo a tomar notas. Ainda bem.
Desta vez, nem anos, nem meses, nem dias: horas. Passadas umas horas, já a brigada fazia o seu serviço de higiene. Noto aqui uma evolução, e para quem diga que só faço criticar? Au contraire: estão todos de parabéns. Bonito é ver uma comunhão de esforços de distintos servidores públicos em prol da qualificação do espaço publico, que é de todos e por isso mesmo deve ser aprimorado.
E descansem: sei de fonte segura que nem a paixão pela higiene urbana, nem qualquer vontade de cercear a livre expressão dos cidadãos, é que moveram as graças tão expeditas do executivo. Ao mais alto nível, quiçá? Pois assumo que terá havido ordem directa vinda de cima… a não ter sido assim, lá voltávamos nós ao motosserrista e ao voluntarismo como estado de espírito reinante na nossa administração municipal. Com resultados de comprovada eficácia, como está bem de ver.
A propósito: então não é que já concluíram o procedimento disciplinar acerca do abate da “Acácia do Jorge”? Pois é, pois é, nem dois meses volvidos! Quanta eficácia. E afinal a culpa não é do motosserrista, a culpa vai toda para o… chefinho dele! Digo chefinho porque fica por aí, nem pensar em chegar aos chefes e aos chefões. Esses não têm nada a ver com isto, e de resto: qual é a pressa?
Pressa nenhuma, realmente. Mas sabem do que é que o chefinho é culpado? O despacho aprovado em reunião de câmara refere “violação do dever de zelo”. Ufa, relaxemos: não se trata de incompetência grosseira nem falha evidente na interpretação do conteúdo funcional. Nada disso. O homem manda abater uma árvore quando o seu dever era proteger a dita, e a falha detectada é de violação do dever de zelo. Percebi.
Creio que seja mais ou menos como um médico cujo conteúdo funcional é o de salvar vidas e desate a boicotar os esforços de salvamento perpetrados pela sua própria equipa. Ou um professor cujo conteúdo funcional seja ilustrar estudantes e desate a promover as vantagens do analfabetismo. Qual seria a multa a cobrar nesses casos? Não sei. Presumo que grande.
Neste caso concreto, o pobre vai ficar 277,19 euros mais pobre ainda – pasme-se, é o valor da multa! – que é para aprender a zelar mais pela natureza e menos pela fidelidade canina a chefes e chefões. Os quais, de resto, pela enésima vez demonstram, senão um sentido estrito de responsabilização pelo que se faz ou deixa fazer debaixo do próprio nariz, pelo menos a sua intransigência quando toca à defesa do superior interesse público municipal. Só desta vez não houve lugar à proverbial declaração, ficam-se por uma repreensão no cadastro do pobre, e até isso um passarinho me diz que não durará.
E é só. Torna a ser reintegrado no trabalho e amigos como dantes, pá! O nacional porreirismo em todo o seu esplendor: quer dizer, manda-se abaixo uma árvore-símbolo de uma instituição de prestígio nacional e internacional e a consequência é a conta do café mais espirituosas no “Jantar de Reis” dos autarcas cá do burgo (o cálculo é meu, fiz por aproximação ao número de cabeças presentes).
Se o distinto leitor estranhar a modéstia da multa aplicada, fique sabendo que a multa aplicável a actos de vandalismo contra património público sob especial proteção (é o caso) pode ir até aos cem mil euros. Mas repare-se no engenho processual: o chefinho (e não o chefe, e não o chefão…) foi considerado culpado, não por ordenar o abate da árvore, mas por não ter evitado que a árvore fosse abatida! E por quem foi abatida? Pelo subordinado directo dele: o omnipresente motosserrista. Ok, então ao menos esse foi questionado pela decisão pessoalíssima de cortar a árvore? Não, claro que não: isso é com o chefe directo. Daí a violação do dever de zelo. É maravilhoso, não é?
Até porque, a agora acrescento: quem é que nos diz que a árvore não tem culpa? Sim, sim: pode parecer caricato à primeira vista, mas pensando nós que bastava a árvore não estar ali de princípio, e este problema nem sequer se colocava, certo? Certo.
Eu cá acho que um tão perfeito enquadramento jurídico devia ser encaminhado ao Supremo Tribunal Administrativo para dele se fazer jurisprudência, visto que a doutrina lavrada em Famalicão pode e deve aproveitar à generalidade da administração pública portuguesa.
Aqui chegados, serei demasiado presumido por nesta hora invocar a minha premonição de 02.12.2024?
Façam-me o favor, é trocar o chefinho pelo motosserrista e nem sequer careciam de se dar ao trabalho de fazer inquéritos.
Até porque, presunção nenhuma, e é até uma chatice. Queria mesmo era que me surpreendessem com o arreganho de uma convicção. Mas não: estes tipos são sempre iguais a si próprios. O que é mau, claro. Para mim, pior ainda: já perderam a novidade.
E portanto, voltando à brigada de limpeza? Esqueçam qualquer pessoalíssima inclinação de favorecimento ao visado nas purgas ora cometidas. No final, o zelo (lá está!) pela gramática é que se fez valer. Está certo: o cidadão pode expressar-se destas formas veementes, mas nunca, nunca mesmo, atropelando as regras ortográficas. Eis encontrada a linha vermelha do nosso executivo camarário.
Porque abre um precedente, quero aqui exortar todos quantos se sintam revoltados e perplexos com a forma como se conduzem os negócios públicos – ao ponto de pretenderem afixar a sua revolta e a sua perplexidade nas paredes do burgo – a tomarem tino quanto à forma e não apenas quanto ao conteúdo das suas alocuções.
Entendamo-nos. Pois não estamos nas redes sociais, onde, a coberto de anonimato ou não, impunemente se estraçalha o bom português. Pois não estamos num qualquer grupo de whatsapp, onde, a coberto de anonimato ou não, se usa e abusa de siglas, diminutivos, jargões. Não, senhores: isto aqui é o espaço público!
Fica dito que no espaço público o erro ortográfico é a partir de agora i-na-dmi-ssí-vel! E quem diz a ortografia, diz a semântica e a sintaxe (sou eu que o digo, mas vão por mim, não convém improvisar). Posto isto, devemos atentar em casos práticos que possam servir de referência para o futuro.
Por exemplo: vem um incauto a querer denunciar o preço das empreitadas adjudicadas pela câmara municipal e é que é sempre aos mesmos. Por exemplo, aquela cisma que provisoriamente nos toma quando pensamos nos mais de sessenta mil aéreos do nosso dinheiro que se metem numas barreiras provisórias da rotunda provisória de acesso à central de camionagem, estão a ver? Julgando estar a proceder bem, o incauto escreve num tapume de obra a seguinte frase: “Hide roubar para a estrada!”
Não pode.
Vai acontecer que a brigada de limpeza municipal entre em acção, mais cedo do que tarde, visto estar mal grafado o verbo inicial. É um caso assaz frustrante na medida em que não se discute a oportunidade do protesto, mas o vício de forma deita tudo a perder. Não digo horas, mas não dura dias.
A outro incauto poderia suceder-lhe esta coisa atrevida de querer denunciar a promiscuidade vigente na contratação de pessoal, eivada como ela é de favorecimentos políticos e familiares, cargos criados à medida, chefias sem subordinados e isenções de horário que têm mais de isenção do que de horário. Imagine-se então que, numa fachada dos muitos prédios devolutos que pontificam pela cidade, escreve: “Cambada de corruptos, até se estorvam!”
Tem tudo para correr mal. Repare-se: quem são a cambada de corruptos? A frase não esclarece. E estorvam quem? Tampouco. O termo “corrupto” tem pouco de interpretável e convirá estar suportado em factos, mais do que nas perceções tão em voga nos tempos que correm. Já o termo “cambada” também é gratuitamente pejorativo, não se pode evitar? Pode sim, e com um pouco de boa vontade. Em suma, e em bom português!, todos ganharíamos se ficasse assim: “O excesso de funcionários é tanto que ninguém sabe quem faz exactamente o quê.”
[não esquecer a pontuação no fim das frases]
Eu sei, o que a frase ganha em abrangência e rigor perde em força e capacidade de síntese. Mas percebam de uma vez: talvez a generalidade dos portugueses transija com atentados ao bom português, mas a brigada de limpeza municipal não. Quem avisa, amigo é: aquela frase acima dos corruptos? Não digo dias, mas semanas não dura.
Outro ainda, imagine-se um desses radicais da extrema-ecologia que não se conforma com a destruição sistémica dos nossos ecossistemas em prol do dinamismo inusitado da nossa região europeia empreendedora. Um tipo contracorrente, estão a ver? Desses que não percebem porque se enfia com um armazém no parque da cidade quando há tantas zonas industriais no concelho com lotes disponíveis. E pensando precisamente no abate d’Acácia do Jorge’, então ia agora escrever algo assim do género “Estamos nas mãos de burgessos!”?
Nâoooo. Nãoooo mesmo!
É o que eu digo: devemos ser rigorosos com as palavras. Do dicionário, apenas uma de várias definições: “burgesso, aquele que demonstra estupidez ou ignorância”. Então não veem o caso esclarecidíssimo do chefinho, chefes e chefões? Mas alguém os pode acusar de serem ignorantes?
Não pode, não. Quando muito de violação do dever de zelo, para o que corre multa de 277,19 euros. Está bem de ver que a brigada de limpeza não perdoava.
E é isso. Espero ter ajudado.
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