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Quarta-feira, 25 Dezembro 2024
Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

A estcupidez

O polo desportivo definhou até ser tão insuficiente que os próprios clubes da cidade deixaram de nela ter lugar. Andamos tantos anos para ficarmos pior do que estávamos.

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Paulo Barros
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Economista famalicense.

Famalicão

Ocorreu-me num repente que na história da humanidade muitas coisas boas se fizeram por orgulho. Ou por soberba; ou por vaidade. Isto é, de uma miríade de coisas feias de se ver deram-se à luz maravilhas da criação. Não tem de ser assim, mas acontece: às vezes. O facto é que nada impede que de uma coisa má se faça uma coisa boa.

Aceitando isso, aceitemos também que algum dia haveria de acontecer connosco. Aconteceu mesmo: tudo isto, vejam lá, a propósito da solução criativa que a vereação foi encontrar para o estádio municipal. É mesmo isso, o Sr. Passos e sus muchachos podem bem gabar-se de muitos e variados feitos, coisa que fazem amiúde (são bons nisso), mas desta é que talvez não estivessem à espera: receberem créditos por uma nova entrada do dicionário!

Não é para todos. E talvez mesmo exagere: é que a estcupidez foi um trabalho de muitos patronos. Décadas de omissão é que nos trouxeram aqui, ao ponto em que o Sr. Mário Passos convoca a comunicação social para anunciar a especialidade da sua ideia bestial (ia para escrever a bestialidade da sua ideia especial, mas ainda fui a tempo de corrigir a frase). Pois construir “prédios com um estádio dentro” é porventura original, mas não será apenas isso: é uma bela síntese do propósito que norteia esta gente.

Vamos por partes. Houve um tempo, ali pelos anos oitenta, em que na nossa cidade íamos ter um polo desportivo. Quer dizer, havia o estádio, velhinho de décadas, degradado, com balneários impraticáveis e o sector do peão, que era como então se usava. Mais tarde construíram a bancada nascente, sem cobertura e até hoje! Já na altura se assumia que seria um de vários melhoramentos. Mas tinha uma pista de atletismo, vejam lá isso!

[por caridade, alguém avisa o senhor vereador do desporto de que no estádio municipal houve em tempos uma pista de atletismo?]

Pois era uma pista tão bela e singela que nem cobertura de tartan tinha. Suficiente ainda assim para que ali se praticassem, lá está, diferentes modalidades do atletismo (coisa curiosa). Quem a usava? Os munícipes, por suposto. Dentre estes, os alunos das escolas circunvizinhas. Até uns poucos atletas de nomeada vinham ali treinar – e se o que ali tinham era o melhor que encontravam nas redondezas, dá que pensar no bem que se tratava o desporto em Portugal.

Ao lado do estádio fez-se o pavilhão municipal, bem modernaço era ele. Claro que agora faz-se pequeno, e é pouco telegénico por só ter uma bancada. Mais tarde vieram as piscinas municipais, com uns campos de ténis por acréscimo. E o estádio ganhou um campo secundário, onde jogavam as equipas da formação do futebol, mas também outras modalidades, como o rugby.

Com as escolas ali mesmo ao lado, batia tudo certo. Quer dizer, era tudo incipiente e mal-amanhado; carecia de investimento persistente, por muitos e bons anos que estariam por vir; mas o mais importante estava garantido, e era a localização: um espaço central dotado de um conjunto de infraestruturas desportivas que serviam o conceito de cidade.

Agora, reparem que não estou a falar de inventar a roda. É que bastava um poucochinho de sorte com os autarcas que nos calharam na rifa. Exemplos? Deixo três (para não me alongar): Maia, Matosinhos e Guimarães. Tudo concelhos com pólos desportivos dignos desse nome. Estão todos ao alcance da mão, não vale dizer que não sabiam.

O que aconteceu, entretanto, em Famalicão? O de sempre: à medida que a cidade crescia, aqueles terrenos foram deixando de ser periféricos. E posto isso, o interesse de muitos e cobiçosos empreendedores (anteriormente conheciam-se por empreiteiros), que era o de impermeabilizar os solos à conta de prédios e asfalto oferecido à comunidade, confrontou-se com a defesa tenaz do interesse público por parte de sucessivas vereações.

Resultado? Ora, queriam o quê, ganhou a estcupidez.

A estcupidez, quando deixada à solta, resulta em muitas coisas distintas, e porém irmanadas por uma particularidade comum, que é o de serem todas más. Uma, pode ser ter-se um bem para a comunidade que vai sendo cercado de interesses hostis, mutilado das suas potencialidades, até que paulatinamente perca a sua funcionalidade.

Perguntam-me: então o estádio, o pavilhão, as piscinas, perderam a sua funcionalidade? Pois não é verdade que, hoje por hoje, o estádio acolhe futebol de primeira; o pavilhão acolhe as modalidades e nas piscinas praticam natação centenas de praticantes e nadadores federados?

Tenho três reparos a fazer. Em primeiro lugar, convém notar que todas estas infraestruturas estão sobrelotadas, e a capacidade de expansão é zero. Nada que não pudesse ter sido acautelado anos atrás.

Outra, que está ligada com a primeira, é que estes recintos e equipamentos não estão inteiramente ao dispor da população. Do estádio nem falo, mas o campo de treinos por exemplo: alguém o podia usar sem ser o futebol profissional? Nas piscinas impera a absoluta primazia que é dada às turmas de natação e aos treinos de competição: aos restantes munícipes que estejam interessados em dar umas braçadas cabe-lhes faltar ao trabalho e aproveitar os horários do meio da tarde.

De resto, é bem uma mania que se instalou no nosso país: no que toca aos desportos colectivos, se és federado, jogas; se não és federado, vais para a bancada. Este é o corolário de termos tantos ou tão poucos equipamentos desportivos que ficam logo tomados pelas agremiações e pelas turmas organizadas. O cidadão incauto que não papa grupos que se dedique ao xadrez.

Em terceiro lugar, seria tão bom se, de uma vez por todas, parássemos de nos contentar com resultados de mínimos. É que tínhamos uma pista de atletismo e deixamos de a ter; a piscina olímpica é ao ar livre e está fechada na maior parte do ano; não é por acaso que não acolhe competições de primeiro nível. Serve o lazer das populações, o que também está bem, mas quem lá vai tem privacidade zero porque a piscina está cercada de prédios. A sério, cercada de prédios? Quem é que autorizou isso? Claro, adicionar uma piscina de saltos está fora de hipótese, e onde seria? Os campos de ténis não são muitos nem poucos: são dois. Dois campos de ténis e uma parede para bater bolas, é assim que se promove o desporto em Famalicão.

Pode ser de mim, mas fica-me a ideia de que este desmazelo na oferta pública de práticas desportivas vai bem com o ar do tempo: um tempo em que pululam ginásios, escolinhas de futebol, pavilhões ‘indoor’ e campos de padle. É o desporto aos quadradinhos. Todo um ecossistema (como agora se diz) visivelmente lucrativo e que medra à sombra da demissão dos poderes públicos.

Por fim: se já estava bom, agora melhora com a tal ideia especial: querem urbanizar o campo de treinos e o parque de estacionamento do estádio. Que ficará enquadrado em prédios. Conheço isso e não é bonito: chama-se Reboleira.

É que a estcupidez também está nos detalhes: veja-se como o F. C. Famalicão deixa de dar uso ao campo de treinos e o primeiro instinto é logo retalhá-lo para prédios. Podiam ‘devolvê-lo’ à comunidade – o clube de rugby da cidade joga em Avidos por falta de campo –, com destaque para a comunidade estudantil que está logo ali do outro lado da rua. Não resulta mobilizador umas centenas de miúdos a praticarem desporto escolar, fora do modelo rolo-compressor dos clubes, cujo único propósito parece ser o de formar ‘talentos’?

Em suma: o polo desportivo definhou até ser tão insuficiente que os próprios clubes da cidade deixaram de nela ter lugar. Hoje, pais e atletas que vivam na cidade obrigam-se a jornadas automóveis para praticar desporto. E para quê? Para que uma meia-dúzia de prédios pudessem ser construídos, e bem falta nos faziam. Quer dizer: andamos tantos anos para ficarmos pior do que estávamos. Quão especial é isto?

O que mais irrita é a vacuidade disto tudo. Deem-lhe mais uns anos e vamos vê-los, aos que se propõem enterrar milhões do erário público num remedeio, a vender-nos a ideia de que afinal o que é bom é um novo polo desportivo construído de raiz. Longe do centro da cidade, claro está. Não é por eles, é por nós. É mesmo isso que nos convém.

 

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