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Vila Nova de Famalicão
Quarta-feira, 4 Dezembro 2024
Paulo Barros
Paulo Barros
Economista famalicense.

A culpa é do motosserrista

Ainda bem que se passou em Famalicão, fosse em Lisboa podia dar-lhes na veneta para cortar a pala ao Camões.

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Paulo Barros
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Economista famalicense.

Famalicão

Era uma árvore especial. Tinha nome e tudo. Num concelho que sabe Deus como lhe faltam atrativos culturais, erigia-se como um marco do nosso património afectivo. Quem como eu, um entre tantos estudantes do concelho, palmilhou o recanto de Ceide do nosso único filho pródigo e adoptivo, saberá do que falo: “a Acácia do Jorge” ocupava um papel central na iconografia famalicense de Camilo Castelo Branco.

Desde há mais de um século emoldurava a frontaria da Casa-Museu. Não era já a árvore original, uma que havia sido plantada nos idos de 1871 pelo ‘filho-louco’ do Camilo, e sim a réplica que, após o incêndio ali havido em 1915, mentes mais esclarecidas do que as nos regem actualmente entenderam ali colocar.

Habitava num escaninho da memória, retorcido pelo tempo e pelas amarguras que o tempo traz. Camilo detestava Ceide, e disso Ceide não tinha culpa nenhuma. Era como uma fera acossada que tivesse batido em retirada dos humores do mundo, acoitado por dívidas e ressentimentos. A casa viera em herança de Ana Plácido e se ali viveram as últimas décadas de vida foi só porque verdadeiramente não tinham para onde mais ir.

Enquanto viveu, Camilo nutriu uma denodada afeição pela árvore, e disso deixou bastas provas impressas: substituía-se assim ao amor daquele filho relapso que tantas amarguras lhe deu. Desgraçadamente, agora a árvore estava doente. Definhava, acabaria a seu tempo por morrer, mas de pé, como devem morrer as árvores. Mais a mais esta, atento o seu inegável valor simbólico. O executivo municipal, e bem, decidiu no tempo devido não abater a árvore, e estavam até em curso ações de mitigação para obviar ao fim que é de todos e haverá de vir.

Agora o anticlímax. Por um destes dias, a brigada de serviço extirpou-a da face da Terra para todo o sempre. Porquê, não se sabe. A câmara municipal abriu um inquérito.

Posto isto, gostaria de deixar algumas notas sobre o sucedido.

Primeiro: o que se passou é de uma boçalidade atroz. Passa dos limites do que devemos aceitar enquanto credores de uma comunidade de valores. É que até para a estupidez humana deviam existir mínimos olímpicos. Pois sim: uma façanha deste quilate, o que é que nos diz? Que muito boa gente, entre fautores e mandantes, anda com os fusíveis desligados de noite e de dia. E ninguém lhes alumia aquelas cabeças.

Segundo: o Sr. Mário Passos não pode humanamente ser responsabilizado por quantos desvarios venham a ser cometidos pelos quase 2.000 funcionários da autarquia. De acordo quanto a isso. Mas, lamento dizê-lo, há aqui um padrão, e o padrão é de desmazelo pela gestão do património que é de todos. E tanto dá que seja uma árvore morta ou uma floresta a encimar toda uma encosta: se se põe a jeito, vem o funcionário de turno cumprir com zelo e sem um mínimo de escrúpulo a ordem que lhe dão ou o seu muito pessoal entendimento do que deva ser o interesse público.

Terceiro: de tanto pregar no cimento, a incúria propaga-se como que por osmose e os serviços camarários vão-se tornando num corpo infecto que prejudica os munícipes. Se ainda ao menos se deixassem estar quietos. Mas não, eles mexem-se, e por todo o lado se vê esta cultura de desamor ao que é singelo. Ao que nos é caro sem ter valor pecuniário. Acaso lhes dissessem para desatar a destratar mobiliário urbano, faziam-no sem perguntar de novo? Parquímetros, caixotes do lixo? Alguns dos galheteiros que embelezam outras tantas rotundas? Se calhar não.

Quarto: seguindo o protocolo não-escrito que desde há muito vinga em Portugal para responder às mais diversas inconveniências, ninguém se responsabiliza pelo mal feito. Ninguém. Mas eu quero aqui dizer que alguém deve ir despedido por causa disto. Já lá vamos a quem.

Quinto: a câmara municipal apressou-se a emitir um comunicado onde diz que a árvore estava morta. Percebe-se a ideia de desvalorizar o sinistro. Mas não é essa a informação que vinha de trás, e que constava em documentos oficiais como o do PDM. E também não é esse o ponto em questão: viva ou morta, doente e a caminho do fim, a decisão superior estava tomada e era a preservação da árvore.

Sexto: foi aberto um inquérito para apurar o que se passou, e do que vamos já sabendo virá por aí uma narrativa para fins de justificação pública. Agora preparem-se: pois não se convencionou dizer que em Portugal a culpa é sempre do motorista? Famalicão, como de costume, já vai lá muito à frente. Posto o caso pícaro, solta-se a chalaça: em Famalicão a culpa vai ser do motosserrista.

Sétimo: devemos acreditar nisto? Pensemos um pouco sobre esta maravilha da técnica. Terá sucedido então assim: estando a brigada reunida na taberna para o habitual café com cheirinho (entre pigarros e galhofas), saiu-se um mais afoito com a ideia insuperável: “É hoje que a mando abaixo!”. Talvez o pobre homem não goste de árvores ou aquela em particular lhe fizesse espécie. Talvez estivesse num dia ruim. Talvez não goste de Camilo. Está no seu direito.

Oitavo: estava a Casa-Museu Camilo Castelo Branco fechada ao público nesse dia. Talvez os funcionários de plantão estranhassem o propósito da visita; talvez lhes ocorresse oporem-se ao desbaste. E ninguém ali poderia desconhecer a existência da tal decisão superior de preservação da árvore.

Nono: entre a impertinência da brigada da motosserra e a imprevidência dos zeladores da Casa-Museu, achando todos muito natural que se desbastasse a árvore-símbolo da instituição, das duas, uma: ou ordens foram dadas ou ordens não foram dadas. Ordens superiores, quero eu dizer. Quiçá, ordens intermédias, visto que os vereadores do Ambiente (de quem depende a brigada) e da Cultura (de quem dependem os zeladores) continuam a afirmar que não alteraram as directivas anteriores. E eu acredito nisso.

Décimo: resta a hipótese de ter sido dada uma ordem intermédia, daquelas sem rasto escrito. Convenhamos: não ia agora a brigada exigir uma ordem escrita por cada árvore que tivesse de mandar abaixo. E posto isto: vai uma aposta como do inquérito não se apurarão quaisquer ordens intermédias? Vai sobrar para o motosserrista. Mas não irá despedido: leva uma repreensão escrita e ficam todos em casa.

A alegre bandalheira que este país é (às vezes). E viva a tropa fandanga! Ainda bem que se passou em Famalicão, fosse em Lisboa podia dar-lhes na veneta para cortar a pala ao Camões.

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