Também na escolha de palavras, o autor do poema projetado deve ser delicado e cauteloso, ele deve abraçar uma e rejeitar outra: te expressarás eminentemente bem, se uma combinação der um ar de nobreza a uma palavra bem conhecida.
– Horácio, in Ars Poetica
Senhoras e senhores, tenham em mente esta pequena – mas chamativa – frase: “A Poesia não é difícil de entender”. E outra coisa ainda: porque leste até aqui, gostaria de te agradecer por gastares o teu tempo preciso em coisas não-matemáticas e menos chamativas. Não há muitas pessoas a fazer isso nos dias atuais – pelo menos não tantas como antigamente.
Mas pronto, vamos nos debruçar na frase “A Poesia não é difícil de entender”. Em alguma altura da vida, todos ouvimos alguém dizer que a Poesia é difícil de entender. Devemos admitir que a Poesia sempre foi pintada como algo apenas sob alcance dos seres mais inteligentes. Mas… e se eu te disser o contrário? E se seu te disser que a Poesia está ao alcance de qualquer um? E mais: e se eu disser que a Poesia pode ser escrita no seu estado puro por qualquer um? Bem, uma coisa de cada vez.
A Poesia é uma forma de escrita muito antiga e tem sido reformulada de século em século, seguindo sempre as necessidades e o conjunto de ideias que cada século expressava (ou como dizem os alemães: Zeitgeist). Quando comparada com outras formas de escrita, a mesma quebra a forma sob a qual é suposto escrevermos. As frases nunca alcançam o fim da linha (os infames “versos”), as palavras podem rimar ao fim de cada verso… Os versos nunca combinam em extensão, mas, por milagre, podem combinar em métrica (isto é, no número de sílabas que cada verso tem).
Devido a todas essas caraterísticas, é comum se ensinar em todos os cursos de Literatura que o maior desafio do poeta é abranger, “empacotar” uma delicada – mas forte e sólida – mensagem em textos que, de facto, podem ser bastante menores que uma simples prosa escrita por algum jovem na escola. Para não mencionar o soneto, a forma mais delicada de Poesia onde deves escrever tudo dentro de 14 versos apenas (em casos excecionais, em 17 versos – o italiano strambotto).
Se tivermos apenas isto em consideração, podemos então concluir que escrever poesia equivale a desenvolver um projeto no último ano de um Mestrado em Engenharia Mecânica, porque tudo o que fazemos atualmente é observar um poema como se ele fosse um corpo mecânico, como se fosse um carro ou um dessas brutas naves espaciais que estamos a construir para chegar a Marte. E, na verdade, não é o caso.
Em primeiro lugar: porque a Poesia não está reduzida a sonetos e quadras para canções, o poema não tem de ser curto. Se ficarmos apenas com isto, esse desafio de abranger mensagens é logo cancelado. Em segundo lugar: nenhum verso tem necessariamente de rimar ou combinar na métrica, visto que poemas não são produtos matemáticos e, para ser justo, deixemos as equações para quem entende. Não digo que as rimas não devem ser permitidas. Elas são boas, principalmente quando és suficientemente experimental para criares uma experiência sonora voltada para o Leitor. Contudo, jamais devemos estar presos às rimas.
Para explicar isto da melhor forma possível, darei alguns exemplos. Imagina que eu escrevo os seguintes versos:
A relva redonda é doentia
Para a alma que desafia
Nas tão escuras ruas
Sob o arbítrio das luas.
Com base nestes versos, que referências consegues mencionar? Primeiro, que a relva é redonda (um pouco estranho, se pensarmos de forma objetiva) e doentia (como é que a relva pode ser doentia?). Depois, vemos que a relva é doentia para as almas. Mas será que as almas sentem algo, sobretudo o que é doentio. Ou será que, dada a referência às ruas escuras, o poema se refere a pessoas reais e o termo “almas” tem apenas um propósito metafórico? Exatamente! Ambiguidade.
Como vimos acima, o poema, apesar de oferecer um bom efeito sonoro, não comunica uma mensagem clara. Na verdade, o mesmo pinta uma certa paisagem, mas essa paisagem não é óbvia, nítida ao olhar mais comum. Mas irei dar um exemplo diferente, sem rimas nem linguagem elegante:
O tenor canta uma cantiga
À donzela que está sobre o palanque
E ela, entre o seu medo e sua inquietação,
Jorra uma lágrima de alegria e lança
Um sorriso brilhante sob a luz do luar.
Com este exemplo que acabei de dar, que podemos nós dizer? Vemos imediatamente que tudo ocorre durante a noite, “sob a luz do luar”. Vemos uma paisagem onde o indivíduo (“O tenor”) canta a uma mulher que o ouve, ainda que esteja “entre o seu medo e a sua inquietação”, visto que ela receia algo (provavelmente ser descoberta pelos seus pais). Também sabemos que, apesar dos transtornos, ela aprecia a serenata, chorando “uma lágrima de alegria” e mostrando um “sorriso brilhante”.
Por meio desta análise, podemos aferir que o poema é simplesmente claro. O poema dá-nos um retrato lúcido daquilo que está a acontecer. E mais importante: os versos não combinam metricamente, assim como não rimam nem possuem uma linguagem tão elegante.
O poema carece de todas as caraterísticas clássicas da arte poética, mas mantém a literariedade, visto que tudo se trata de retratar cenas numa perspetiva diferente do género mais objetivo de perspetivas. Ademais, o poema vai para além das típicas estruturas da quadra (neste caso, tem cinco versos, sendo um quinteto) e, ainda assim, contém uma informação forte.
Depois destes dois exemplos, há agora uma questão a colocar: a Poesia é difícil de entender? A resposta: não. Tudo depende da forma que a mesma é escrita e da perspetiva do Leitor. Porque a Poesia trata-se de perspetiva e, por se tratar de perspetiva, pode ser escrita por qualquer pessoa, desde que mantenha a literariedade e haja um treino constante de observação que vá para além daquilo que nos é mostrado.
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